segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A sabedoria dos livros

Os livros são perigosos porque são aceleradores e intensificadores da nossa experiência humana, abrem portas e janelas que nem sequer sabíamos que existiam, são surpreendentes encontros de vida. Ao mesmo tempo são cúmplices inesperados da nossa aventura humana. Cada um de nós é também os livros que leu, os autores que encontrou. Os livros são esse alargar de horizontes que permitiram aquele encontro mais secreto e profundo com a nossa voz. O ato da leitura é um ato de exposição, mesmo quando parece muito inocente acaba por ser uma aventura da qual nenhum de nós sai verdadeiramente igual à forma como entrou.
A minha primeira biblioteca foi a minha avó, analfabeta, mas sabia romances de cor e era um encanto escutá-la. O que formou a minha alma foi a leitura dos poemas, que é feita mais de intensidade e de fulgores. A poesia dá-nos mais espaço para o silêncio, é como um relâmpago a que se segue muita outra coisa, que é da construção do leitor. A oração diária do livro dos salmos foi música no meu ouvido. A leitura da poesia foi uma espécie de iniciação ao ato de ler. Penso que a poesia é uma ordem mendicante, os poetas são mendigos do real. Por vezes temos uma atitude de dominação sobre as coisas e os outros, mas se cairmos em nós percebemos que somos e sabemos pouco. A aceitação dessa escassez é fundamental para nos abeirarmos do mundo de outra forma.
Acontece pensarmos que o nosso tempo se destacou como uma jangada de pedra ou metafísica da história humana, e acreditamos que somos radicalmente outra coisa diferente do que os homens foram, do que gravaram na pedra, do que escreveram. E de repente, ao lermos textos antigos e contemporâneos, percebemos que estamos muito próximos dos nossos antepassados, que são, de certa forma, também os nossos sucessores.
Job, por exemplo, o homem do protesto, que não aceita as respostas fáceis em relação ao sofrimento, que desentende o sentido de o homem justo ter de penar neste mundo; e quer falar diretamente com Deus, e Deus aceita essa espécie de duelo verbal com Job. Com a forma como esse livro está escrito, a sua arquitetura, as suas palavras, a raiva, percebemos que estamos inteiramente ali, aquelas palavras são as que nós diríamos.
Não consigo separar a sabedoria do amor; a sabedoria é uma inteligência, uma ciência, uma arte, mas é tudo isso como uma forma de amar. Quando pensamos na grande sabedoria, pensamos naqueles que, vivendo a grande depuração que o tempo opera em cada um de nós, são capazes de conservar uma inocência, uma pureza, um afeto. É sempre necessária uma porção muito grande de amor para chegar à sabedoria.
S. Paulo, no momento da conversão, ficou cego para começar a ver. A cegueira é uma metáfora de uma outra visão. É necessário um apagamento, um corte. Quer a experiência da tradução quer a da criação literária nasce de um corte primordial, que é muitas vezes a contemplação do mundo, o espanto perante o real. Esse corte obriga-me a ver as coisas de outra forma. Há que apagar o modo imediato, comum, mais óbvio e aceitar a escuridão, aceitar que não vemos, só tateamos.
Jesus perguntava: «Como ousas dizer ao teu irmão: “Deixa-me tirar o argueiro da tua vista”, tendo tu uma trave na tua?». Este exercício de humildade em relação à vida é muito importante para o ato da criação. Por outro lado devemos perceber que na escuridão nós vemos. Em criança temíamos o escuro, e mais tarde aprendemos que no escuro vemos muitas coisas que nele se revelam. E aceitamos como preciosas essas coisas que percebemos dessa forma. Há que ensaiar novas visibilidades, novas formas de compreensão do mundo, sabendo que a sabedoria pede de nós uma fome e sede inesgotáveis. Comove-me muito que o professor Eduardo Lourenço esteja aqui a tomar notas na primeira fila. É essa curiosidade infinita pelo mundo e pelos outros que é sabedoria, que creio ser a mais elevada forma de amor.
A relação pedagógica é uma grande paixão. É muito interessante ver chegar uma geração de estudantes. Em Teologia tenho o privilegio de não ter turmas muito grandes, é possível acompanhar o percurso de cada aluno. Isto é para mim muito estimulante. O trabalho do professor é muito do semear. Há coisas que vemos mas o mais importante é, por vezes, o que não vemos. Isto aproxima-se muito de uma definição que gosto muito de amor: amar é não controlar o que o outro vai fazer do amor. Há testes e exames, e aí o professor pode avaliar, mas sabemos que os percursos mais fecundos aconteceram para lá dos resultados: foi uma marca, um estímulo, uma palavra, um despertar que depois se tornou uma âncora para a vida e fez a diferença. Aprendo muito com os estudantes, e o que me interessa é passar um método, uma paixão por um determinado assunto, porque sei daqui a 10 ou 20 anos eles falarão deles com outras palavras, citando outros autores, mas o entusiasmo será o mesmo.
Quanto mais inúteis são as coisas de que me ocupo, mais feliz me deixam.

"A sabedoria dos livros" - Encontro entre José Tolentino Mendonça e Frederico Lourenço, 
Festa do Livro. Jardins da Presidência da República, Lisboa, 2.9.2016
Imagem - Copyright: Gustav Adolph Hennig, Lesendes Mädchen, 1828

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - em nome da terra - (II)

O teu corpo. O amor do teu corpo e tudo o que é possível acumular para uma vida, esse resgate permanente da tua juventude, da tua perfeição que é a nossa identificação para pronunciar Terra ou Universo ou Deuses. É contigo, com a tua expressão de amor que em átomos de energia e sorrisos, de pele branca que nos encontramos na mais desnudada imaginação.
É a construção da nossa mortalidade, mas é mais do que apenas material. É feita de deslumbramento, de mistério e de impossível, pois a ternura só se formula nessa criação de doçura. Uma doçura capaz de em momentos de tempo mais lento permitir a nossa criação, entre a tua agilidade, o teu riso de nuvem, os teus cabelos soltos em caracóis, as tuas mãos de chuva, a tua vitalidade de mármore feita corpo transbordante de alegria. 

E agora que sucumbo às feridas do tempo, em que tropeço nas minhas mãos gastas, com linhas de chuva escorrendo, como gotas de vidraças ensombradas de vento vejo as áleas da janela que resistem aos dias seguidos de rotina. Decoram o mais longe, com braços esguios nascidos em rugas que o tempo acastanhou e de onde flores de vento se erguem como pequenos jardins. E deste amor que se lembra, como amar-te agora em rugas de silêncio, no tempo do acontece, na essência da eternidade, acima da memória descalcificada. O sublime é sempre uma iluminação, ama-se com esse sentido de circunstância, a forma de escrever eternidade, como quando os astros se juntam numa galáxia de luz. 

É o ponto inicial e final de consumir beleza, o fascínio encontrado nos teus olhos, o amor do qual não sabíamos sair, o mundo que não existe, as formas maciças de toda a expressão corporal, o fundamento da terra. E em casas, como árvores ouvíamos a folhagem, o silêncio do absoluto, os seres da terra, a sua música e talvez também Deus. E era para superar a nossa mortalidade e o seu poder, a sua omnipotente vaidade que nos amávamos até que perdemos o que era o amor, essa canção sem lobos.

E dos momentos em que partiste tornou-se impossível recuperar as formas e o movimento de como, de quanto te amei. As formas possíveis do que fomos, a nossa ontologia, como uma natureza viva que já não se recupera no desenho do teu rosto, pois já não sobra do real que vejo. O amor éramos nós nesses tempos de rio e bosques e com o universo fomos só uma forma de eternidade. O corpo que se transcende de angústia de tempo deu-nos essa totalidade de nós. O que farei desse sonho de nuvem?

Com as palavras de Vergílio ou o que elas me dizem. Vergílio Ferreira. (1990). em nome da terra. Imagem: © – Acompletelife.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - em nome da terra - (I)

E então disseste-me em alvoroço
- Vem ouvir!
E eu fui. Está aqui este louco a pregar, disseste ainda. Era uma voz rouca, inchada para baixo até às cavernas da profecia. "Porque vós estais todos enlameados na rotina animal e não quereis saber senão da gamela a horas, da canga a horas, do trabalho servil, e nem seque sabeis que existis.
- Que estação é esta? - perguntei. E tu disseste
- Não sei. Estava à procura da emissora e apareceu-me este pregador.
que existis. Todo o país está podre de estagnação, vós moveis um pé no lodaçal e ficais estoirados do esforço ao fim do dia. Mas nunca vos perguntais para quê, nunca vos perguntais o que isso quer dizer, nunca vos perguntais com que direito haveis de ser boi até ao fim da vida. Parai ó estúpidos, suspendei um momento esse vosso trabalho animal e perguntai-vos se é essa a vossa vontade, se num instante da vossa tarefa cavalar é isso com que sonhais para vosso prazer. Porque é que não fazeis aquilo que quereis? (...)

O que eu vos venho pregar é que vos perguntais para quê. O que tenho a dizer-vos é uma coisa elementar como a a água e o pão.   O que tenho a dizer-vos é se já vos perguntaste porque é que estais vivos, que é que fazeis da vida, porque é que amochais à vontade de outrem, porque é que alombais com um destino que não é o vosso. 

Tudo no universo tem um destino que é seu, vós nem sequer sabeis qual é o vosso porque antes de perguntardes já vos albardaram com um outro. O sol serve para aquecer, o mar para a navegação e o abastecimento piscícola, a pedra para fazerdes muros ou jogardes à pedrada - vós para que é que sois? Não vos trago mais uma doutrina política que já há de mais a apodrecer como a fruta excessiva, nem qualquer outra forma de serdes em rebanho nem que seja a de uma filarmónica. O que vos trago é apenas uma pergunta - porquê ou para quê. (...)

Estamos fora do tempo . Das idades. No susto de te desvaneceres. Tens os olhos cerrados mansos sobre ti para nada fugir de ti e eu ter-te toda no meu punho sangrento. E então soergo-me para que o meu imaginário se cumpra e se esgote. Perfeita inteira. Nenhuma linha se desvia pelo caminho da imperfeição. É a perfeição do embalo, a curva de um berço - e os seios. Fáceis leves como o teu corpo, mas não nascem dele. Seios de si mesmos, sem auréola, seios de puberdade. Tem já o desenho para a boca infantil de um dia, há-de haver essa boca quando entrares no tempo, na história corruptível da criação. Sem tempo agora, forma absoluta de uma geometria, que é a essência do incorruptível. Há um modo de o corpo ser, eles são esse modo. Integrados como a linha de um gesto. Ou uma flor. Ou uma pedra. Ou um cão. Integrados numa linha como um destino, que estupidez querer explicar o ser. Ou o azul. Ou uma cor que não existe e é a tua. Ou a harmonia do repouso da minha vida inteira aí.

Vergílio Ferreira. (2015). Em nome da Terra. Lisboa: Quetzal, páginas 155, 157 e 158

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O chocolate - Cozinha Experimental (IV-B)

O que é o chocolate?

O chocolate, tal como é consumido hoje, resulta de sucessivos aperfeiçoamentos industriais no seu processo de fabrico. O cacau, substância da qual se produz o chocolate, é amargo, sendo por isso, confecionado adicionando-lhe açúcar e outros ingredientes tal como leite, manteiga de cacau e/ou frutos secos.

Origem do cacau e a sua difusão:
O cacaueiro (Theobroma cacau), de onde se extraem as sementes de cacau, foi cultivado pela primeira vez há mais de 4 mil anos, pelas civilizações Maia e Azteca. Cristóvão Colombo trouxe as sementes para a Europa em 1502. A elite espanhola começou a adicionar-lhe açúcar, tornando-o menos amargo e com propriedades organoléticas mais agradáveis. O chocolate quente começava a tornar-se uma bebida, e nos 150 anos seguintes foi difundido por toda a Europa. 

Algumas substâncias químicas do cacau e os seus efeitos
O cacau é constituído por mais de 300 substâncias químicas, que induzem a libertação de vários neurotransmissores (moléculas responsáveis pela transmissão de sinais entre os neurónios). Entre os neurotransmissores destacam-se:
  • endomorfinas, hormonas que reduzem o stress, diminuem a dor e induzem satisfação;
  • serotonina com efeitos antidepressivos;
  • feniletilamina, que leva  alteração do nível da pressão arterial, a glicose, induzindo sensação de excitação e aumento do nível de alerta. 

Outras substâncias do cacau:
  • Flavonoides (essencialmente procianidinas) de-sempenham um papel relevante na redução da pressão arterial e do risco cardio-vascular. Anti-oxidantes. Causam vasodilatação arterial (au-mento do calibre das artérias).

Outros efeitos benéficos do chocolate:
  • diminuição da sintomatologia inerente à fibromialgia (doença crónica a nível muscular);
  • redução dos níveis de stress (com a ingestão de cerca de 45 gramas de chocolate preto por dia);
  • redução e oxidação do colesterol LDL (“mau colesterol”) e aumento do colesterol HDL (“bom colesterol”);
  • fornecimento de vitaminas do complexo B como as B2 e B12 e minerais como o fósforo e o magnésio. 

Chocolate preto versus Chocolate de leite versus Chocolate branco:
  • Chocolate de leite clássico contém cerca de 30% de cacau sólido, os restantes 70% são açúcar, manteiga de cacau, leite, soro lácteo, emulsionante e aromas. Ao ingeri-lo a pessoa está a consumir pequenas quantidades de cacau, mas elevadas quantidades de hidratos de carbono e lípidos, o que não é benéfico.
  • Chocolate preto, que pode conter mais de 80% de cacau, deverá ser preferido uma vez que é nutricionalmente mais rico.
  • Chocolate branco, não tem na sua constituição cacau sólido, mas apenas manteiga de cacau, açúcar e leite.

Assim, deve-se privilegiar o consumo do chocolate preto por ter um nível de cacau mais elevado.



Algumas referências bibliográficas
Associação Portuguesa dos Nutricionistas – “5 questões sobre o chocolate”.
Portal da diabetes in Bruno Alexandre Paulo Santos Almeida – “Propriedades do chocolate: conheça os benefícios para a saúde”.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Ganache de chocolate - Cozinha Experimental (IV-A)

Ingredientes:
200 g de chocolate
200 g de natas

Preparação:

  1. Aquecer as natas até ferverem.
  2. Retirar o tacho do lume.
  3. Acrescentar o chocolate partido em pedaços.
  4. Tapar o tacho.
  5. Misturar bem até que a mistura apresente um aspeto brilhante.

Queques de chocolate - Cozinha Experimental (IV)

Queques de Chocolate

Ingredientes:
250 g de açúcar (175 + 25 + 50) g
200 g de chocolate
200 g de farinha Branca de Neve
4 ovos
125 mL de natas

Preparação:

1. Separar as gemas das claras.
2. Bater as claras com 50 g de açúcar.
3. Bater as natas com 25 g de açúcar.
4. Bater muito bem as gemas com 175 g de açúcar até a massa ficar branca.
5. Derreter o chocolate (no micro-ondas, de 10 em 10 s).
6. Juntar o chocolate derretido à mistura das gemas com o açúcar.
7. Adicionar a farinha, delicadamente.
8. Envolver as natas.
9. Envolver as claras.
10. Ir ao forno em forminhas untadas com manteiga e polvilhadas de farinha.
11. Cozer a T= 180ºC, Dt = 20 min.
12. Depois de desenformados e frios, cobrir com ganache de chocolate.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A noite abre meus olhos (II)

Amo os que atravessam os campos
desamparados
mais do que se pode

Amo suas verdades:
algum ânimo, vitórias inúteis
um sentido impróprio para a inocência
nada ou quase nada diferente
do perigo

ninguém soube ao certo donde vinham
para encontrar uma vida
ou coisa mais pura ainda

entregues como este verão já no fim
às folhas secas
que voam

José Tolentino Mendonça. (2010). "Levada do Castelejo", in Baldios. Lisboa: Assírio & Alvim.Imagem - Copyright - Vítor Caldeira.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A noite abre meus olhos (I)

«No princípio era a ilha
embora se diga
o Espírito de Deus
abraçava as águas

Nesse tempo
estendia-me na terra
para olhar as estrelas
e não pensava
que esses corpos de fogo
pudessem ser perigosos

Nesse tempo
marcava a latitude das estrelas
ordenando berlindes
sobre a erva

Não sabia que todo o poema
é um tumulto
que pode abalar
a ordem do universo agora
acredito

Eu era quase um anjo
e escrevia relatórios
precisos
acerca do silêncio

Nesse tempo
ainda era possível
encontrar Deus
pelos baldios

Isso foi antes
de aprender a álgebra» 


José Tolentino Mendonça,"A infância de Herberto Helder", in A noite abre meus olhos.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Top 5 - Os leitores (1º Período - 16/17)

Os Leitores que integram o Top5 com mais requisições durante o 1º período. A todos eles os nossos parabéns!
7º ano:
1. Lourenço Simão 7º3ª;
2. Joana Rodrigues 7º1ª;
3. Catarina Figueiredo 7º1ª;
4. Alice Neves 7º2ª
5. Tomás Nascimento 7º5ª.
8º ano:
1. Diogo Castro 8º1ª;
2. Alexandra Spranger 8º 1ª;
3. Rafael Rodrigues 8º2ª;
4. Inês Almeida 8º3ª;
5. João Alves 8º4ª.
9º ano:
1. Joana Cardoso 9º2ª;
2. Daniela Lemos 9º1ª;
3. Ana Rodrigues 9º3ª;
4. Manuel Neves 9º3ª;
5. ....
Ensino Secundário:
10º ano:
1. Lúcia Pereira 10ºC3;
2. Beatriz Conceição 10ºH1;
3. Beatriz Morais 10ºE2;
4. Sofia Morais 10ºE2;
5. Dilma Semedo 10ºE2
11º/12 anos:
1. Mariana Pina 11ºE2;
2. David Martins 11ºC2;
3. Débora Santos 12ºC1;
4. Ricardo Silva 12ºE1;
5. Mariana Pereira 12ºH1.

In Memoriam - Mário Soares (1924-2017)

A História não é uma narrativa que se escreva no espaço em que decorre, no momento em que as ondas fazem circular o tempo, dando-lhe um movimento, mas ainda não o explicando. A História é uma construção analítica sobre fontes e documentos, sobre o corpo de uma sociedade, sobre todas as histórias que fizeram a vida das pessoas. A História é uma desconstrução que pretende trazer todas as vivências de mil vidas para o horizonte do que se pode conhecer. Por isso é feita por todos. Este não é ainda o momento para essa análise detalhada do que foi o Portugal nas últimas duas / três décadas. É o momento para falar de um homem que partiu e do valor da memória coletiva.

Existem pessoas, muito raras que sobre o corpo da sociedade têm uma ideia, um sonho de construir algo que possa ser mais belo. Pessoas que sabem ler o tempo curto e pensar um tempo longo, onde possíveis transformações podem ocorrer. Pessoas que transportam um ideal e o fazem desabrochar nos outros,  na sua cumplicidade, nos desejos mais íntimos. A liberdade é o sentido maior de cada um, pois nele se forma a sua própria identidade. Quem descobre essa possibilidade para dias melhores é um homem raro.

Mário Soares foi esse homem. Teve um ideal de liberdade, compreendeu o fim tardio do Estado Novo e propôs-se com outros a denunciar o seu cinzentismo. Soube compreender o que era preciso construir após a manhã gloriosa e teve o engenho para escolher o mais prudente. E do futuro teve sempre uma ideia que seria melhor se fosse feito em liberdade e num sentido democrático da vida.

Não é verdade que fosse amado por todos. Os saudosistas não acharam piada à abertura de uma caixa de Pandora, alguns não lhe reconheceram o seu sentido de liberdade, as suas opções. Elas foram sempre fraturantes para algo diferente. O fim do Estado Novo, a descolonização, o Estado de natureza democrática e um sentido liberal da economia em muitos contextos. 

Mas a dívida do País, se ela pode ser dirigida apenas a uma pessoa é significativa. Como estrangeirado trouxe uma ideia de alegria, de cor, de festa a um País triste. O País ainda está longe dessa alegria. Como ele diria, - o amanhã pode ser sempre melhor. Depende de nós. Afinal foi esse o seu maior feito. Dar uma ideia que pode ser desenvolvida por todos nós, pois um País  é uma comunidade e que essa inspiração depende da nossa  vontade.

A palavra e o mundo - A Ilíada - (II)


A palavra e o mundo tem-nos trazido durante alguns meses numa viagem pela literatura de viagens, e igualmente na descoberta de obras que nos conduzem pelo mundo com as as palavras, ou fazendo-as nascer nessas viagens. A Ilíada será um dos casos mais substantivos desta ideia de relação entre a palavra e o mundo. A Ilíada é na forma um conjunto de poemas, como a Odisseia também o foi. As duas obras, cuja data certa ignoramos forjaram o espírito grego nessa ideia de que a Poesia com os seus cantos era uma forma de educação de um povo, de uma cultura. As duas obras procuraram forjar uma ideia de educação, uma integração de comunidades humanas numa forma de sociedade.

Os dois poemas são os dois testemunhos literários mais antigos da civilização grega e a sua autoria é entregue a Homero num período que se pode situar entre os séculos IX e VIII a.C., com o progressivo domínio da escrita e estabelecimento das polis. As epopeias homéricas retratam em seus cantos, os costumes, as formas de vida das populações micénicas. Nelas vemos as famílias aristocratas e a sua fundação através de um herói. A guerra dos Aqueus contra Tróia é só um exemplo desta construção de um poder que se fundasse num herói, ou tivesse alguma ligação ao divino. Importa reter que estes poemas homéricos formaram a paidéia, a língua, as artes e a construção religiosa sublimada nos deuses do Olimpo. A formação educativa e ética dos Gregos passou por estes textos, tal como a sua ideia de um cidadão que se desejava justo e sábio.
As epopeias homéricas representam momentos distintos. A Ilíada é do tempo da guerra, dos heróis e a Odisseia, dos homens que já têm uma cidade a que se ligam, que fazem viagens, navegam pelo Mediterrâneo, alargam uma civilização. Na Ilíada, a figura central é o guerreiro. A sociedade e o comportamento dos homens não está voltado para a vida pública. Concentra-se, antes na guerra e nas suas atitudes face a ela. A figura do herói aparece sempre inserida numa batalha e é ela que determina as suas virtudes, como coragem, lealdade, ou espírito de luta. No herói o mais importante são a luta e a vitória e é da sua valentia que nasce o respeito de todos. Parecendo uma narrativa distante, o que nos diz A Ilíada aos nossos valores contemporâneos?

A Ilíada traz-nos Heitor e Aquiles, traz-nos a dor de que se reveste o mundo, a capacidade para a entender, no sentido que ela é inseparável da existência humana. A Ilíada é um poema que revela "uma cólera", uma luta por uma conquista, mas diz-nos mais do que isso. Diz-nos que é preciso entender o sofrimento humano e que não é possível pensar a vida, vivê-la e estar à sombra desse sofrimento. Os valores que importam podem obrigar a uma luta, onde ele entre nós e temos de o descodificar, de o compreender, de o materializar em nós.

A Ilíada é no fundo uma forma diversa protagonizada por Aquiles e Heitor sobre como responder a essa condição de sofrimento que está presente no mundo humano. Neles vemos uma luta entre uma defesa de algo, de valores, embora a cólera de Heitor seja mais compreensiva, pois está a lutar pelos outros. Aquiles compreenderá que a dor fica, mesmo quando vinga Pátroclo matando Heitor e apenas na restituição aos deuses tem um apaziguamento dessa dor. 

Aquiles tem no seu encontro com Príamo um conforto por esse sofrimento que viveu. Aquiles compreendeu que a vida tem custos e que qualquer batalha, mesmo com os valores de um herói pode significar uma perda. A vida não pode fugir a isso, ou nós nela. Na batalha de Tróia, os Gregos receberam a lição maior de um herói, Heitor pela defesa de uma cidade, de um conjunto de pessoas, o valor do altruísmo. Aquiles compreendeu que na natureza humana a ausência de sofrimento não é uma garantia, independentemente do ethos de quem combate. É por esta envolvência que A Ilíada é um texto intemporal, uma construção de mundos através das palavras de Homero.