segunda-feira, 24 de março de 2025

O medo e a angústia existencial - laboratório sensorial

 No âmbito do laboratório sensorial, a realizar-se a 27 de março, integrado na Semana das Ciências Sociais e Humanas,  divulgamos, de seguida, um texto sobre a temática do medo e da angústia existencial:


                                

"Sobre o Medo (parte I): Uma perspetiva filosófica

Exploração filosófica de uma situação:

Onde moro atualmente, embora seja litoral, jamais ouvi falar de um ataque de tubarões. Portanto, nenhum evento traumático relacionado com esses animais jamais me ocorreu nem a qualquer pessoa próxima de mim. Assim, se eu demonstrar este medo, ele aparecerá como um evento aparentemente injustificável, e inclusivamente, por qualquer fator externo.

Naturalmente, esta questão pode ser um ponto de partida para entender  “o quê” e as causas da fobia ou do medo. Esta reflexão, portanto, concentrar-se-á em entender o que é o medo, por que o sentimos e como vencê-lo. E para tentar entender o problema, recorri à literatura que me foi mais acessível, partindo de uma perspetiva filosófica-teórica para uma visão psicológico-prática. Esta reflexão, portanto, terá duas partes, sendo esta primeira dedicada a uma perspetiva filosófica do assunto.

Pois bem, podemos dizer que o medo é uma das nossas emoções mais básicas, estritamente associada ao nosso sentido de autoproteção e sobrevivência. O corpo humano reage instintivamente ao perigo, à aparência do perigo ou simplesmente à crença do perigo, levando-nos em direção à fuga.

Fugir, afastar-se, correr para longe de forma a esquecer o que nos perturba é a raíz de qualquer vivência profunda como seja o medo

: “é especialmente daquilo de que foge que a presença corre atrás” revelando o que se esconde de uma forma mais profunda – que eu me sinto ameaçado, perdido ou desencontrado de mim mesmo.

Encontramos em Heidegger a reflexão mais próxima sobre o modo fundamental como o medo se faz ver: na ação.

Basearemos as ideias que se seguem tal como se apresentam no capítulo sexto da sua obra Ser e Tempo.Sabe-se que a preocupação mais profunda de Heidegger não se concentrou na existência em si, mas no ser, mais especificamente no esquecimento do ser. Para ele, o homem cotidiano (do século XX) mantém-se numa situação de encobrimento do seu ser, por isso, não possui uma compreensão profunda da sua própria existência. E essa tendência para o encobrimento, o equívoco, a banalidade que este filósofo colocou pela primeira vez ligando-o ao problema do “esquecimento de si e do ser”.

 De acordo com a análise que M. Heidegger faz, os gregos, dedicavam-se à questão do ser, mas, ao longo do tempo, o homem foi-se afastando do ser para se fixar nos entes. E isso levará Heidegger, não surpreendentemente, a encontrar na superação ou mesmo na “destruição” da tradição filosófica clássica uma solução.

Todo o problema central , na visão heideggeriana, gira em torno do conceito de Dasein (o ser-aí ou o ser-no-mundo). O Dasein, normalmente traduzido para o português como “o ser- aí ou o aí do ser”, é aquilo que confere ao mundo o caráter de mundo, e aqui o mundo tem uma definição diferente da conceção moderna estabelecida em Descartes. Falar de “ser-no-mundo” em Heidegger pressupõe vários graus: a quotidianeidade; o modo impróprio de existir em contraponto com o ser autêntico e o cuidado bem como a resolução a ser si mesmo. E é aqui que o medo e a angústia mostram a sua função fundamental.

 Ao concentrar-se em explicar os aspetos existenciais que constituem o Dasein como ser no mundo, Heidegger viu-se diante da questão existencial fundamental, - qual é, afinal, o sentido da existência humana, o traço constitutivo da existência do Dasein no qual residirá a totalidade do ser da existência humana, por outras palavras, a própria essência humana. Ele encontrará esse traço totalizante que define a essência do ser humano justamente no conceito de angústia, buscando o nexo ontológico entre angústia e medo, admitindo que entre ambos existe um parentesco de grau, por isso aparecem, na maior parte das vezes, inseparáveis um do outro. No entanto, o medo é mais concreto e emocionalmente mais identificável que a angústia.

Essa distinção que Heidegger faz entre angústia e medo leva-nos à conclusão de que o meu medo de tubarões tem muito pouco a ver com tubarões. Heidegger diz que, ao contrário do medo, a angústia não vê um “aqui” e um “ali” determinados, de onde o ameaçador surge. É justamente quando o ameaçador não se encontrar em lugar nenhum que se anuncia a angústia. Ela não sabe o que é aquilo com que se angustia. No entanto, “em lugar nenhum” não significa um nada meramente negativo: “o ameaçador dispõe da possibilidade de não se aproximar a partir de uma direção determinada, situada na proximidade, e isso porque ele já está sempre 'por aí', embora em lugar nenhum. Está tão próximo que sufoca a respiração e, no entanto, encontra-se em lugar nenhum”.

Podemos, portanto dizer, de uma forma simples, que o medo parece mais concreto e determinável na sua origem ou causa enquanto a angústia é indeterminável e coloca-nos perante o abissal nada.

No caso da psicologia, o medo e a angústia terão uma carga traumática que, repetida, levará a uma defesa e fechamento do ser humano que, numa atitude de fuga, não será capaz de lidar com esse trauma sem ajuda.

Aliás, Heidegger, trabalhando e dando Seminários a psiquiatras (ver Seminários de Zollicon), discutirá as formas como o medo e a angústia podem levar o ser humano a perder-se da sua essência, sendo “ o CUIDADO” a categoria existencial que restituirá o sentido à totalidade do seu “ser-no-mundo”.

O que Heidegger explicita é que o medo vai muito além da situação em que uma pessoa teme ser atacada por tubarões, ou morrer afogada, ou viajar de avião; é um estado diante do mundo ou um modo de lidar com o mundo, perante o qual os tubarões, a água e os aviões estariam aí, senão como figuras quase irrelevantes, sobretudo, como representação/sinal daquilo que se verdadeiramente se teme.

Aquilo de que se tem medo é sempre um ente intramundano que, advindo de determinada região, torna-se, de maneira ameaçadora, cada vez mais próximo, diz o autor alemão. Medo é a angústia imprópria, entregue à decadência do “mundo” e, como tal, a angústia em si mesma, está ainda velada. Na angústia, o ser aí como existente sente-se no “estranho”. Estranheza significa “não se sentir em casa”, não estar “familiarizado com...”. O não sentir-se em casa deve ser compreendido aqui, essencialmente e ontologicamente, como o fenómeno mais originário, que nos afasta do nosso ser e do ser enquanto tal.

A angústia, para Heidegger, em comum acordo com Kierkegaard, tem um quê existencial essencialmente humano. Ela é mais que um fenómeno psicológico e ôntico; ela tem uma dimensão ontológica, pois remete-nos para totalidade da existência como ser-no-mundo. Só o homem se angustia, só o homem existe e só o homem pode ter uma compreensão do ser. Kierkegaard dirá que o desespero e a angústia revelam a nudez do ser humano a si mesmo. A diferença entre os dois autores vai residir no fato de que, em Kierkegaard, a angústia revela o nosso ser finito, o nada de nossa existência diante da infinitude de Deus, do caráter eterno de Deus, enquanto que,  em Heidegger, a angústia revela-nos o sentido existencial da finitude do homem – põe-nos diante do NADA.

“É na angústia que a liberdade de ser para o poder-ser mais próprio do Dasein se mostra numa dimensão originária e fundamental.” ( Ser e Tempo)

O filósofo alemão descreve, igualmente, o sentimento de apavoramento de que falava Pascal com o sentimento de angústia, e sugere que a angústia é fundamental para que se alcance a verdade. A busca da verdade não deve ser estática, passiva, contemplativa, mas movimentada pela ação; a ação de ir vivenciar o Nada, o desconhecido, o medo. O medo, assim, impele o homem a abandonar a passividade e abrir-se para o desconhecido e abissal, lutando contra os seus instintos mais elementares.

Para Heidegger, o medo não é algo a ser evitado, mas faz parte do nosso ser mais profundo. O obscuro, o desconhecido, o temido, é onde propriamente encontramos a nossa essência como seres humanos. Somente abrindo-nos em direção ao medo, e enfrentando-o, conseguiremos, de facto, conhecer-nos e superar-nos a nós mesmos. Esta pode ser, talvez, uma diferenciação própria do Dasein, uma capacidade do ser que reside não apenas em estar no mundo, mas de ser-no-mundo, de estar envolvido no mundo, compreendido no mundo. E o medo da morte encontra aqui uma posição especial, pois coloca-nos em face, ou com a eternidade, ou com a total falta de sentido, o que foi, por sua vez, brilhantemente, comentado por Pascal.

Uma pausa para observar uma coisa interessante: parece que essa diferença entre Heidegger e Kierkegaard e entre Heidegger e Pascal, que parte justamente do fato de que Kierkegaard e Pascal buscam explicar a angústia a partir da eternidade, do caráter eterno de Deus, ao passo que Heidegger busca uma explicação mais fenomenológica da “disposição existencial”, como vulgarmente designamos “o sentir-se” explica. É difícil encontrar, uma abordagem filosófica sobre o medo, fora de pressupostos teológicos, senão em Heidegger. A impressão é que, para a maioria dos estudiosos sobre o assunto, Heidegger conserva o pensamento estritamente filosófico, “puro”, enquanto os autores que o influenciaram, como Kierkegaard e Pascal, “se afastam” da filosofia para encontrar refúgio na “teologia”, o que representa uma espécie de retrocesso filosófico.

 Heidegger considera que o pensamento Onto-teológico, que esteve na base da Metafísica tradicional, foi incapaz de se abrir em direção à eternidade e ao Ser, ocultando o pensamento do homem que o limitou na sua existência a este mundo, aparente, banal e orientado para o “ruído”, “ a conversa banal” ou “ a rotina do hábito”.

Notas:

Para obter uma compreensão melhor da visão de Kierkegaard sobre a angústia, recomendamos a leitura da sua obra “O Conceito de Angústia”, lembrando, claro, que também temos uma lista de leitura do autor. Sabendo que a maioria das questões que preocupam as pessoas estão na maioria relacionadas ao "medo da morte", faremos esta reflexão não mais em duas, mas em quatro partes. A segunda parte trará a visão de Pascal sobre a importância de se “antecipar a morte” e de se investigar a natureza mortal ou imortal da alma; na terceira parte traremos conceitos e conselhos práticos sobre o medo e como dominá-lo, inspirados numa abordagem menos analítica e mais psicológica sobre o tema; e na quarta falaremos de medos relacionados com a infância que podem influenciar na vida adulta."

A continuar...

Texto da Profª Isabel Nunes de Sousa (Filosofia)




A Profª Bibliotecária: Ana Cristina Tavares

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