terça-feira, 31 de maio de 2016

AMADEO DE MANHUFE

"Em Manhufe, na freguesia de Mancelos, no concelho de Amarante, é possível sonhar com Paris. Em Manhufe, cem anos depois de Amadeo de Souza-Cardoso, quantos Amadeos ainda sonham com Paris?
Essa não é uma contabilidade de números rigorosos, talvez sejam necessárias frações, terços e quartos, talvez sejam necessárias percentagens inventadas. Há mais neblina do que matemática nessa contabilidade. Também sem resposta, podemos perguntar como será essa Paris sonhada? Quantos caminhos existem até ela?
Enorme é a certeza de que, em Manhufe, parte de uma freguesia e parte de um concelho, existe alguém a sonhar com Paris. Não é demasiado significativa a forma exata dessa esperança, mais importante é a intensidade do seu brilho. Ao longo das noites de Manhufe, alguém sonha com a cidade das luzes. Também nesse caso não há medições rigorosas para a intensidade do brilho, mesmo que engenharias inteiras tentem provar o contrário, falta uma escala que aceite todo o concreto que existe na subjetividade.
Os pequenos sonham com os grandes, talvez sonhem em ser grandes, mas quais são os números capazes de medir esses tamanhos com precisão? Quem é, afinal, pequeno e grande?
A internet não sabe quantas pessoas vivem em Manhufe. No entanto, diz-me que em toda a freguesia de Mancelos há cerca de três mil habitantes. Em Paris, afirma a internet, vivem mais de dois milhões e duzentos mil. Entre estes, quantos sonham com Manhufe? Será que existem? Será que é possível sonhar com Manhufe em Paris?
As perguntas são úteis, ajudam-nos a pensar com clareza.
É certo que em Manhufe há quem sonhe com Paris, é assim há mais de cem anos. Mas se, entre tantos parisienses, não houver quem sonhe com Manhufe, não será possível afirmar que, nesse aspeto, Manhufe é maior do que Paris?
Em 1913, instalado em Paris, Amadeo de Souza-Cardoso pintou Cozinha da Casa de Manhufe, óleo sobre madeira, 29,2 x 49,6 cm. Para além do muito que podemos encontrar nessa imagem de sombras e recantos, fica a evidência de que, já nesse tempo, aqueles que nasceram em Manhufe, eram capazes de sonhar/lembrar a sua terra quando estavam em Paris. A pergunta paralela a essa certeza é: quantos pintores nascidos em Paris estiveram em Manhufe e aí sonharam/lembraram a sua cidade?
Sonhar é uma imensa qualidade, edifica futuro. Lembrar também favorece o mesmo resultado, a memória é um precioso material de construção.
Em 1887, em Manhufe, freguesia de Mancelos, concelho de Amarante, distrito do Porto, em Portugal, nasceu um pintor excecional. Aquilo que conseguiu ver foi novo durante muitos anos, ainda é, talvez seja novo para sempre. Mesmo morto pela gripe espanhola, Amadeo de Souza-Cardozo nunca deixou de ser jovem. Pouco antes desse dia, 25 de outubro de 1918, estava em Manhufe e sonhava em regressar a Paris.
Por aquilo que conseguiu ver, pela intensidade desse brilho, Amadeo será sempre recordado. Os seus sonhos são agora memórias de outros e, ao mesmo tempo, são contributos para novos sonhos, edificam futuro. Por toda essa luz, Amadeo será sempre recordado em Manhufe".
por José Luís Peixoto, in revista Up
A Casa de Manhufe, Óleo s/madeira, 50,5 x 29,5cm, c.1913
Colecção Particular

Oferta educativa da UL - 9ºs anos

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José Luís Peixoto - um sorriso feito literatura

"Não são as palavras que distorcem o mundo, é o medo e a vontade. As palavras são corpos transparentes, à espera de uma cor. O medo é a lembrança de uma dor do passado. A vontade é a crença num sonho do futuro. Não são as palavras que distorcem o mundo, é a maneira como entendemos o tempo, somos nós".
(José Luís Peixoto, No teu ventre).

Receber José Luís Peixoto na nossa Biblioteca e estar com ele, entre alunos e professores, foi um encanto. Muitas vezes tentamos decifrar o corpo das palavras, o que elas transportam, como colher nelas a vida, a nossa substância. Nomear a realidade com as palavras é um gesto inicial e criador de significados, é romper memórias e construir pontes.

Na escrita de José Luís Peixoto, já tínhamos adivinhado um sentido estético envolvido pela observação, pelo cuidado em olhar o outro, uma narrativa poética que se alimenta de experiências. As que a memória deixa, as viagens realizadas pelo escritor e uma forma curiosa, humilde e sábia de olhar o mundo. Como se conhece um escritor?

Conhece-se um escritor pelas suas palavras, pela poesia das emoções, pelos temas com que nos envolve, com a respiração com que nos abraça. Conhece-se um escritor, quando nos encontramos com o seu rosto, com as suas mãos desenhando gestos, os lábios pronunciando palavras, os olhos sorrindo experiências.

Conhece-se um escritor, quando ele nos conta as suas histórias, as memórias que criaram um caminho. Conhece-se um escritor, quando se está com ele, e ele connosco. Obrigado, José Luís Peixoto. Foi um momento raro. Um desses instantes de que se alimenta a vida. E a experiência viva que “a literatura é o que é”, uma experiência da própria da arte de viver, uma transgressão do mundo em movimento permanente.

Boletim Bibliográfico

Smashing Awards

Em baixo, os alunos que pelo seu estudo e dedicação foram nomeados para a edição deste ano, dos Smashing Awards, a decorrer dia 31 de maio de 2016, às 21 horas, no salão preto e prata do Casino Estoril. 
Parabéns a todos!
NOMEADOS 2015/2016

Artista Júnior
Alexandre Hugo Lopes Sá – 7.º 2ª
Iris Filipa Duarte Sereno Novais Lourenço – 8º 1ª
Isabel Alexandra Figueiredo Cabral Varandas – 7.º2º
Leonor do Carmo Ulrich Gamel Bettencourt – 9.º 2ª
Maria do Mar Almeida de Carvalho Salgueiro Cavaleiro – 9.º 4ª
Miguel Sanches Oliveira Dantas Machado – 9.º 5ª
Rita Tavares Gomes Aires – 9.º 6ª
Vasco Galvão Barahona Dória Nóbrega – 7.º 5ª

Artista Sénior
Amadeu Flor da Rosa Marques – 12.º A1
Guilherme Patrício Pereira – 12.º A1
Jonathan da Silva Romcy – 11.º A1
Lúcia Afonso de Oliveira – 10.º A1
Margarida de Gouveia Pinto – 11.º A1
Patrick Urbano Dias – 10.º A1
Rodolfo Emanuel Duarte Nunes – 12.º A1

Cientista Júnior
André Campos Martins – 8.º 1ª
André Filipe Ferreira Bernardo – 9.º 6ª
Maria Geraldes de Oliveira Borges da Fonseca – 9.º 6ª
Marta Fernandes Marques - 9.º 5ª
Matilde Trindade Antão – 9.º 6ª

Cientista Sénior
José Soares Trindade Nunes dos Santos – 10.º C1
Martim Teles da Silva de Almeida Duarte – 12.º C2
Tomás Melo Bento Quental Pereira – 12.º C2

Chef
Francisco Barbosa Duarte – 7.º 4ª
Gabriela Maria dos Santos Sá Pereira – 7.º 1ª
Ismael Huambo Júlio – 7.º 2ª
Lara Micaela Eleutério Couceiro de Lorena Montezuma – 7.º 1ª
Maria Ana Rolo Metello Monteiro Nobre – 7.º 1ª
Maria Beatriz Teles Correia Pacheco de Carvalho – 7.º 4ª

Desportista Júnior
Caetana Vidal Gonçalves Neves Carneiro – 7.º 5ª
Constança Onofre de Almeida Frazão – 9.º 6ª
Francesca Canal Lameiro – 9.º 5ª
Madalena de Souza e Menezes Dias – 7.º 3ª
Madalena Reis Cerdeira – 7.º 3ª

Desportista Sénior
Carlos Miguel de Carvalho Saraiva – 12.º C2
David Manuel Ferreira Castanheira – 12.º E1
Martim Teles da Silva de Almeida Duarte – 12.º C2
Oleg Reabciuk – 12.º C2

Digitalíssimo
André Campos Martins – 8.º 1ª
Daniela Nunes Salsinha – 7.º 3ª
Diogo Pereira Soares Caldas – 7.º 1ª
Frederico Fernandes Frazão – 8.º 4ª
Ismael Huambo Júlio – 7.º 2ª
Myriam Sofie Al-Asadi Bildoy – 8.º 2ª

Escritor Júnior
Ana Beatriz da Costa Milhano – 9.º 5ª
André Campos Martins – 8.º 1ª
Constança Onofre de Almeida Frazão – 9.º 6ª
Francisco Gonçalves Pinto de Sousa Nunes – 9.º 5ª
Gabriela Maria dos Santos Sá Pereira – 7.º 1ª
Guilherme Carvalho Oliveira de Canas Matos – 7.º 4ª
Maria Joana Maymone Martins Quintela – 7.º 4ª
Winnie Patrícia Coelho Landoite Lourenço – 9.º 3ª

Escritor Sénior
Ema Isabel Alfacinha de Oliveira – 10.º H1
Leonor Cardoso Morais Hartmann Hermínio – 10.º H1
Manuel de Mira Chastre Brazão Santos – 11.º E2
Maria Luísa Machado Moreira – 12.º H1
Maria Madalena Maymone Martins Quintela – 12.º H1
Sofia Lúcio Sequeira – 12.º C2

Filósofo
Catarina Ferreira Rebelo – 11.º C1
Catarina Vitorino de Campos Ventura – 10.º C1
José Soares Trindade Nunes dos Santos – 10.º C1
Manuel de Mira Chastre Brazão Santos – 11.º E2
Tomás José de Vasconcelos Pereira e Alvim Almas – 11.º H1

Matemático Júnior
André Campos Martins – 8.º 1ª
António Ricardo da Silva Duarte Récio – 9.º 3ª
Fausto Raúl Melo Cabral Bettencourt – 8.º 2ª
João Marcelo Carvalho dos Santos Oliveira – 9.º 6ª
Madalena de Souza e Menezes Dias – 7.º 3ª
Madalena Reis Cerdeira – 7.º 3ª
Matilde Trindade Antão – 9.º 6ª
Tomás Maria Coelho da Ribeira – 7.º 2ª

Matemático Sénior
Carolina Araújo Nunes da Silva – 12.º C2
Lourenço Ribeiro Tamen – 11.º C1
Manuel de Mira Chastre Brazão Santos – 11.º E2
Maria Isabel Silva Castro Guerra – 12.º C1
Maria Madalena Cadavez Alarcão Ravara – 12.º C1
Marta da Câmara Pina Vilarinho – 11.º C2
Martim Teles da Silva de Almeida Duarte – 12.º C2

Psicólogo
Carolina Araújo Nunes da Silva – 12.º C2
Manuel Maria Martins Rodrigues da Silva – 12.º C2
Maria Luísa Machado Moreira – 12.º H1
Nuno Miguel Pinho da Silva Lelo Filipe – 12.º C2
Sofia Lúcio Sequeira – 12.º C2
Tomás Melo Bento Quental Pereira – 12.º C2

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Encontro com José Luís Peixoto (II)

 
 
 
Registo Fotográfico do encontro com José Luís Peixoto.
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Encontro com José Luís Peixoto


Encontro com o Drº António Gentil Martins

O Drº António Gentil Martins esteve na escola a falar com alunos do 9º 3ª sobre a sua experiência de vida como homem e como profissional ligado à medicina. Fez uma breve apresentação sobre o seu percurso escolar, os estudos realizados no país e no estrangeiro e o modo como fez as suas escolhas até construir a sua carreira de médico. 

Foram discutidos pontos tão interessantes como O Serviço nacional da saúde, a relação dos laboratórios com a investigação a novas soluções ou questões mais delicadas como a eutanásia. Foram colocadas algumas questões sobre os principais factores que influenciam uma vida saudável e a responsabilidade individual de cada um para construir um futuro mais feliz e mais conseguido do ponto de vista profissional. 

Foi um encontro sobre a experiência de uma vida de alguém de grande valor no campo da medicina e que deixou sugestões muito pertinentes sobre o valor do estudo, da curiosidade e do trabalho como elementos essenciais a qualquer sucesso profissional.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (V)

A morte leva-o em três dias. Um cobertor de trevas vem sufocar-lhe a fímbria das pestanas caídas, o peito regougando num tablado a rebentar. Na linha dos cabelos, uma coroa de água de contínuo lhe encharca a testa. Vibra de súbito uma laranja, um cobalto, aos nervos transmitindo o choque da febre. No horizonte os castelos se acomodam, em sua frescura de florestas imensas. Andam, sente o homem, pelas pranchas de câmara, em seu rosto despejando um olhar abismado.

Porque morre? Ele lançara, no período de trinta anos e onze meses e treze dias, a órbita completa da longa experiência. Explorar as vias que rasgara, numa disciplina fatal de burocrata, seria contradizer-se, homem que só inverno discernia os alicerces da natureza.  Também no amor, aquele olhar que jamais se aplacara na focagem de um objeto único, se alongava agora por promessas de perigo a que se julgava incapaz de resistir. Daí que o recebimento que concede à morte assuma o carácter de finitude, que assiste sempre a liquidação das contas de um ser com ele mesmo. (...)

E Amadeo, na incessante vertigem da produção, apenas se teria por predestinado enquanto libérrima criatura, cara a cara com o destino. Nesse vinte e sete de outubro de 1918, a vida que findara começava, como todas as que se extinguem, no reaver do palpitar definitivo de suas cores. Quanto às alamedas de Espinho, que no crepúsculo dos finais da estranhíssima guerra se tomavam despovoadas e varridas de areias, igualmente saberiam elas que a sua hora soara.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 106.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (IV)


Administrador do talento próprio, se nos arriscássemos a falar de tal essência a propósito de quem progressivamente escravizou meios de expressão e aparelhagens de domínio, jamais Amadeo se olvidará de si. Pessoas de tal nervo, só porque não podem dar-se ao luxo da ausência de si próprias, se não ausentam dos outros. 

Temos visto desses irmãos que erigiram o currículo à custa da obsidiante preocupação consigo mesmos, reflectida, como numa ilusão de espelhos, na solicitude para com o próximo e até para com os objectos. Assim foi Amadeo, assim o sofreram alguns que, agastados pela sua presença, incontinentemente o votaram à danação de que, afinal,investidor vocacionado que sempre entendeu de conveniências, viria a retirar os melhores dividendos. 

Ninguém, daqui para diante, o insultará de louco, reconhecendo-lhe todavia a malevolência capaz de converter um morno serão numa tarde de Carnaval. Só que a desordem do espírito é de muito mais que necessita, da aptidão para visionar e não só para resolver, da anulação absoluta de ser arte a ideia que o transponha. Se Amadeo atingisse qualquer forma de náusea, o que é duvidoso, alguma vez acontecesse, seria daqui que viria a crescer, desta sabença de que a rotação dos ponteiros é só para si impossível carreto de levar aos ombros.

Com a quotidianidade forçada às fronteiras que convencionara, experimentaria a agonia irritada dos que assistem à festa por detrás de um esconso guarda-vento, dos que vitoriam as  núpcias dos outros com a sabedoria acumulada e insubmissa de jamais nelas poderem participar. Imputar-lheao alguns a inacessibilidade, outros o mau gosto, não sendo de excluir os que, desentendidos de sinuosidades estéticas, apenas suspeitarão a rendibilidade do charlatanismo ou o modismo da mediocridade. 

Permanecerá Amadeo aquém e além deles, nesse ubíqua condição em que se reverenciam os que foram e ficaram? Só os deuses, para quem a morte é jovem, pairam eternamente em regiões assim, o que será talvez conclusivo sinal da genialidade do servo que convocaram.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 107 e 108.
Imagem -Copyright: Amadeo de Souza-Cardoso- O muro na jenela
Óleo s/ tela, 28 x 21cm
c. 1916

Colecção Particular
Museu Municipal Museu de Souza-Cardoso, Amarante

Bioética - os seus campos de decisão


A civilização moderna encontra-se numa posição difícil, porque embora edificada para nós, não está ajustada à nossa medida. A nossa ideia de homem ainda não encontrou o seu lugar estranho e complexo, ela oscila entre a visão filosófica, que o erige no único sujeito num mundo de objetos, e a visão científica que tende a ignorar o espírito humano. Ainda não ajustámos a nossa visão do Homem ao Homem e do mundo ao mundo.

Recordamos aqui a célebre alegoria da caverna. As sombras projetadas no fundo da caverna são o mundo natural, aquele que percecionamos. Esses prisioneiros agrilhoados no seu lugar e aos quais uma gargantilha impede de voltar a cabeça “é connosco que se assemelham”. A fascinação que o jogo irrisório das silhuetas imprecisas exerce sobre esses infelizes revela o nosso estado, sentimo-nos perdidos: o meio elaborado pelo Homem não se ajusta à nossa estatura, nem à nossa natureza. Assim poder-nos-emos questionar se o Prometeu revestido pelo poder, desagrilhoado, na opinião de alguns, ou seja com o poder de intervir, de praticar o possível e mesmo o impossível, não o vai voltar a agrilhoar, se ele não olhar ao conveniente.

Vivemos num presente esmagado pelo peso do futuro. A nossa relação com o tempo é, antes do mais, uma relação extremamente dura e violenta com o futuro. Fala-se do futuro mas, paradoxalmente, nunca fomos tão responsabilizados pelo futuro que devemos deixar às gerações seguintes. Deveríamos, portanto, mudar radicalmente de atitude e romper com todo o tipo de utopismo. Quer o aceitemos ou não, estamos investidos de uma responsabilidade desconhecida, a de deixarmos às gerações futuras uma terra habitável e um mundo sustentável. Sem isto, os nossos descendentes não serão capazes de progredir, nem exercer as suas responsabilidades.

Necessitamos de uma reabilitação do ethos, dos valores morais que fundamentam as atitudes humanas; precisamos da ética, de teorias filosóficas sobre os valores e normas que devem nortear as nossas decisões e comportamentos. A atual crise deve ser entendida como uma oportunidade; importa encontrar uma resposta para os desafios do presente. Se o futuro não está escrito, é múltiplo. Assim todas as possibilidades, mesmo o impossível, são imagináveis. A questão da escolha é portanto essencial.

A Bioética, ética aplicada às ciências da vida, surge na interseção de uma crise de valores e de normas coletivas com o desenvolvimento do individualismo das pessoas e do pluralismo das sociedades. Estimula o debate público sobre as escolhas para o nosso futuro, promovendo uma alteração de consciência, incentivando a participação informada e responsável dos cidadãos. Como ciência transdisciplinar, começa a ser reconhecida como a componente indispensável da formação do cidadão empenhado na vida coletiva, tornando-se numa ética do cidadão, numa ética cívica, enquanto reflexão sobre a ação que se desencadeia, desenrola e se repercute na comunidade global. Tal como defende Victoria Camps (1998), a participação cívica deve ser encarada como a estrutura moral da democracia, onde a ética contribui de um modo determinante para a formação de uma consciência de deveres inerente à formação de direitos, o que faz com que funcione como um elemento de ponderação na educação para a cidadania.

É justamente pela sua especificidade que a Bioética, quando considerada sob o ponto de vista da educação para a deliberação, constitui uma oportunidade excecional para o desenvolvimento de competências reflexivas, críticas, de base plural e democrática. Ao mesmo tempo, permite desenvolver a consciência da responsabilidade e da necessidade da deliberação para a decisão, reconhecendo a posição do outro sem (pré)-conceitos, pressuposto indispensável para um qualquer debate ético.

Ana Sofia Carvalho, "A Bioética e a responsabilidade de deliberar para decidir", Observatório da Cultura, nº 21, in http://www.snpcultura.org/

Quando fui outro - Livro da semana

Título: Quando fui outro
Autor: Luis Ruffato
Edição: 1ª
Páginas: 234
Editora: Alfaguara
ISBN: 978-989-672-042-1
CDU: 821.134.3-1"19"
Sinopse: Quando o lemos interrogamos o real continuamente e verificamos que parcela de identidade se nos compõe. Em cada leitura descobrimos palavras novas, significados diferenciados. Em cada página que ele nos dá pensamos nesse pedaço de eternidade que é o presente, ameaçado pela efemeridade dos instantes quase incandescentes e o futuro maravilhado em tantas linhas de horizonte. Em cada uma das suas páginas um exército de críticos e analistas enquadra-o em heterónimos, em possibilidades, em estados de espírito, em sensações múltiplas. As suas páginas são também a sua biografia. Ele concedeu-nos essa unidade desafiante que se confronta com o sentido que o real nos dá em oportunidades difusas e multicolores.

A sua biografia é uma impressão, um gesto de uma genialidade complexa e universal. Foi com ele que atingimos a universalidade dentro de um particular de pouca grandeza, onde sabemos distinguir a palavra, a dúvida e o sonho. Inventou, num mar de aparente solidão, uma nova forma de apresentar as palavras, de desenhar ideias de futuro, construindo uma língua, uma literatura.
Ele somos todos nós. Aqueles que ele inventou nos quotidianos onde tantos seres particulares ganham a sua originalidade, a sua universal humanidade. Se há poeta, se há escritor, se há literatura, ele é tudo isso. É a demonstração de que um país é a sua cultura, a sua língua, as suas pessoas, a sua individualidade. Luis Ruffato olhou para esta universalidade e deu-nos um livro que seleciona os poemas dos principais heterónimos, sem os enquadrar nesse sentido, antes, organizando a poesia de Fernando Pessoa em temáticas que o permitem compreender. 

Da estranheza da alma, à ideia de renúncia do pensamento, ao sofrimento de cada um, num mundo sem referências, do cansaço como um barco numa praia deserta, às convenções sociais e às sua infelizes consequências nas realidades naturais, o amor que nos desafia belo e inútil, que não se revela numa vida breve. Luiz Ruffato tentou compreender a unidade de Pessoa e entender na sua obra literária o que ele próprio foi.

Descobriu aquilo que torna Pessoa universal, a ligação profunda entre arte e vida, procurando ultrapassar as sombras que nos cercam e encontrar "essa outra coisa linda", que somos nós próprios. Com esta antologia vemos melhor a grande dádiva que Pessoa deu à língua, forma de expressão e renovação de quem com ela quiser nascer. Ainda e sempre a grande função da literatura, inventar mundos, ou a esperança de sobressair sobre esse desamparo da vida, esse tempo longo, de vidas breves, como as nossas.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Vinte anos de RBE - as Bibliotecas

(A RBE foi uma iniciativa de grande relevo para o papel das Bibliotecas nas escolas, para uma redefinição das estratégias colaborativas à volta do livro, das literacias e das aprendizagens. Quem conheceu as Bibliotecas antes dos anos noventa sabe como eram muitas vezes espaços desqualificados e sem capacidade para uma função integradora na escola.
Com a RBE nasceu uma ideia de partilha de competências e abordagens em rede e desenvolveu-se um conceito de Biblioteca como um espaço de afetos, onde todos cabem e onde os recursos permitem alimentar formas múltiplas de imaginação. Por esta ideia de Biblioteca criada pela RBE e alimentada por tantos passa essa formulação essencial de com a Escola formar pessoas mais informadas, o que significa pessoas mais livres. Deixamos em baixo a mensagem da atual coordenadora nacional da Rede de Bibliotecas Escolares , Manuela Pargana Silva).

Em 1996 foi lançada a Rede de Bibliotecas Escolares (RBE). Vinte anos depois, 2016 é o ano que dedicamos a celebrar o percurso feito, mas também, e sobretudo, a refletir, a pensar em como podemos responder às exigências dos tempos que vivemos.  Tempos de grande aceleração, de crise de valores, de alterações profundas nos modos de perceber e de pensar. Como garantir que seremos abertos, flexíveis, adaptáveis e exigentes para garantir ao nosso público uma formação que lhes permita viver num mundo que ainda
não sabemos como será?

Tudo vai depender de como formos capazes de perspetivar o futuro.
Com o trabalho, o esforço e a inteligência de todos - professores bibliotecários, coordenadores interconcelhios, colaboradores do Gabinete RBE - chegámos até aqui com resultados de que nos podemos orgulhar.

Ao nosso lado temos parceiros próximos e valiosos que enriquecem o nosso programa, ao mesmo tempo que usufruem desta rede com créditos firmados.
Trabalhamos com professores, auxiliares, técnicos, mediadores de leitura, escritores e ilustradores, sempre concentrados no nosso público preferencial, os alunos, com quem também tanto temos aprendido.

A nossa forma de estar e de trabalhar é juntos e em rede e é assim que garantiremos que o que construímos nestes vinte anos não se torne passado ou ultrapassado. Conto com a energia de todos para concretizar o lema desta celebração: 20 anos RBE - uma história com futuro.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (III)

Não perguntem agora como lhe foi a vida, com que espécie de filamentos se manufacturou a tessitura da biografia a escrever. Quando a passagem é tão curta como esta, não será que tudo se reduz a um dia único, lavado e sem heroísmo assinalável, nele se degustando apenas o tegumento que não adormeceu? 

De Amadeo, como de outros, poderemos dizer que oscilou do apetite à renúncia. Nem lume nem gelo o tiranizaram alguma vez, porque incólumes de intempéries ficam os homens missionários. A sua deslocação por aqui, recorta um triunfo renascentista, desses em em que um carro possante e de rodas lavradas avança esmigalhando tudo em seu curso, a mancha festejada pelas esvoaçantes nereides que nele seguem.

A história pessoal que realiza, as pegadas que deixa no solo, até pelo anonimato a que por vezes parece remeter-se, consagram uma determinação que, nas cartas que ficaram, quase se diria da última vontade: "É preciso fazer todo o esforço pela ação artística", repetirá. De há muito que estou pronto e acho que é necessário desenvolver mais ação dirá ainda. "Cuido daquilo que aprendi e herdei", resumirá por fim.

Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 107.
Imagem -Copyright: Amadeo de Souza-Cardoso- Pintura (Paisagem)
Óleo s/tela: 50 x 73cm, c.1910
Doação de D. Lúcia de Souza-Cardoso
Museu Municipal Museu de Souza-Cardoso, Amarante

Semana das Artes (X) - Poema Gráfico

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra,
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?
 Vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito, sem nexo, sem conseqüência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...
 Maieável aos meus movimentos subconscientes do volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantas coisas que me emprestaram eu sigo no mundo
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!

À esquerda o casebre — sim, o casebre — à beira da estrada
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.

À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidros, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?

Eu, guiador do automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?

Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza, ante os campos e a noite,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbido, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,

À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exato que a vida.

Na estrada de Sintra, perto da meia-noite, ao luar, ao votante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra,
Na estrada de Sintra, cada vez menos perto de mim...

Álvaro de Campos, "Ao Volante", in Poemas
Poesia gráfica de David Pereira, Oficina Multimédia, 12º A1