sexta-feira, 31 de março de 2017

Os filmes do mês

São Jorge é um filme português que entrou em exibição nas salas de cinema durante o mês de março e que nos devolve uma leitura sobre os anos da Troika em Portugal, justamente 2012 a 2015. É um filme assinado na realização por Marco Martins e que tem na representação de Nuno Lopes um enorme papel, que foi premiado no último festival de cinema de Veneza.

O filme retrata uma comunidade humana, a cidade da Bela Vista, na Amadora e nos a vida a procurar sobreviver ao mínimo possível. Jogador de boxe, Jorge, para manter a família decide candidatar-se a um emprego, segurança numa empresa de cobranças. Existiam em Portugal, em 2015, mais dez mil empresas de cobranças. Estas empresas estavam legalizadas, mas podiam usar os métodos que entendessem para recuperar o valor das dívidas. 

O filme retrata não só uma profunda crise económica e social, mas  também as relações humanas que eram em muitas situações de assinalável racismo. O homem isolado numa sociedade em que tudo vale revela-nos uma densidade dramática que nem todos terão tido conhecimento. É uma obra cinematográfica de grande relevo, pois faz o que raramente o cinema em Portugal tenta construir, que é uma leitura sobre os acontecimentos, enquanto eles ainda persistem. O filme deixa muitas zonas de silêncio sobre o tempo social e político, para quem o souber ler. Um filme a ver.

Aquarius foi outra das estreias do mês de março que se revela um grande filme de cinema. Realizado por Kleber Mendonça Filho e com a participação especial de Sónia Braga, o filme mostra uma realidade que vai sendo progressiva em cidades tornadas mostras de uma Disneylândia para investidores ricos. Uma viúva reformada tenta lutar contra a compra e os métodos usados por uma grande empresa para vender o seu apartamento. Filme de grande significado, com uma representação notável e que é um grito de pessoas isoladas contra o poder especulativo e financeiro de grupos sem dimensão humana.


Negação de Mick Jackson é um filme que procura retratar uma disputa judicial que envolve uma historiadora do Holocausto e uma figura que o nega. O filme baseia-se no livro de Deborah Lipstadt, Denial: Holocaust History on Trial. O filme coloca uma das questões que há algumas décadas alguma historiografia quis levantar, embora seja sobretudo um ato de fé e não a produção de conhecimento. As lutas ideológicas e religiosas contribuem pouco para o conhecimento da realidade. Ainda assim é um filme curioso para conhecer a ideia da negação.

Dois outros filmes ainda estreados em março são Um Reino Unido de Amma Asante e Um Instante de Amor de Nicole Garcia.

Em Um Reino Unido a realizadora devolve-nos uma história verídica acontecida no final da década de quarenta do século XX, envolvendo um príncipe herdeiro  do Botoswana, Seretse Khama e uma britânica branca, Ruth Williams. A história é interessante e serve como documentário a uma realidade que foi superada,  a do apartheid e a do colonialismo. Trata-se de uma mor que venceu as dominações políticas da época. 

Um Instante de amor é um filme que se baseia na obra homónima de Milena Agus e tem em Marion Cotillard um grande desempenho. A narrativa ocorre na França no início da década de cinquenta. 
Filme sobre os tempos após a 2ª guerra mundial e que nos questiona sobre as dificuldades de as mulheres terem um papel mais participativo numa sociedade conservadora, sobretudo em ultrapassar esquemas culturais muito rígidos em relação aos comportamentos. Gabrielle sente-se angustiada pela vida e como tem de a viver. O seu conhecimento com André Sauvage, um ex-soldado ferido na guerra da Indochina parece dar um sentido novo à sua vida, parece dar-lhe a conhecer uma forma diferente de amor.

terça-feira, 28 de março de 2017

A palavra e o mundo - Navegações (I)


Era a rota do oiro
Porém nos grandes mares
Ou em praias baloiçadas por coqueiros
O espanto nos guiava -
Água escorria de todas as imagens
......................................
À luz do aparecer a madrugada
Iluminava o côncavo de ausentes
Velas a demandar estas paragens

Aqui desceram as âncoras escuras
Daqueles que vieram procurando
O rosto real de todas as figuras
E ousaram - aventura a mais incrível - 
Viver a inteireza do possível
....................................
Ali vimos a veemência do visível
O aparecer total exposto inteiro
E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar
Era o verdadeiro
.......................................
Difícil é saber de frente a tua morte
E não te esperar nunca mais nos espelhos da bruma
........................................
Através do teu coração passou um barco
Que não pára de seguir sem ti o seu caminho

Sophia. (2015). "II", "III", "V", "VII" e "XIV", In Navegações. Porto: Assírio & Alvim

segunda-feira, 27 de março de 2017

Dia Mundial do Teatro

O actor acende a boca. Depois os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.


O actor estala como sal queimado. (...)
Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus, e
dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente como o actor.
Como a unidade do actor. (...)


O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.
Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.


Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomina. (...)

O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.

Herberto Helder, in Poesia Completa.

Imagem - Mário Viegas (numa peça de Samuel Beckett)

quarta-feira, 22 de março de 2017

A palavra e o mundo - Mulher de Porto Pim (II)

Sempre tão atarefados, e com membros compridos que agitam com frequência. E como são pouco redondos, sem a majestade das formas acabadas e suficientes, mas com uma pequena cabeça móvel em que parece concentrar-se toda a sua estranha vida. Chegam deslizando sobre o mar, mas não nadam, como se fossem pássaros, e infligem a morte com fragilidade e uma ferocidade graciosa. 
Permanecem logo tempo em silêncio, mas depois gritam uns com os outros com fúria repentina, numa algazarra de sons que quase não variam e aos quais falta a perfeição dos nossos sons essenciais: chamamento, amor, pranto de luto. E como deve ser penoso o seu amar-se: áspero, quase brusco, imediato, sem uma macia capa de gordura, facilitado pela sua natureza filiforme que não prevê a heróica dificuldade da união nem os esplêndidos e ternos esforços para a consumar.
Não gostam da água e têm medo dela, e não se percebe por que razão por que razão a frequentam. Também se deslocam em bandos, mas não levam fêmeas e adivinha-se que elas se encontram algures, mas sempre invisíveis.
Às vezes cantam, mas só para si, e esse canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento pungente. Cansam-se depressa, e quando a noite cai estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Passam deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes.

Antonio Tabucchi. (2016). Mulher de Porto Pim e outras histórias. Lisboa: D. Quixote. 

terça-feira, 21 de março de 2017

Dia Mundial da Poesia

Hoje é  o Dia Mundial da Poesia. Na verdade, deveria ser esse um dia de todos os dias. Há algum tempo Fernando Alves chamava a atenção para a necessidade de fazer baixar a poesia às coisas-mesmas para tocar no mundo. 
A urgência de fazer poisar a poesia no real, nas pessoas, na nossa vida, no quotidiano é-nos dita de forma sublime por Drummond, “temos apenas duas mãos e o sentimento do mundo”. Seja pois com as mãos que inventemos novas formas de ver o real, ou os modos de enfrentar a máquina do mundo, sobretudo quando "são de novo tristes as cidades sob a chuva" (Fernando Alves). 
Há algum tempo José Luís Peixoto afirmava que "a poesia é uma torre sobre a vida e sobre a morte". O poema é como navegar num mundo onde sem luz e sem corpo se encontra o que queremos fazer nessa viagem com os outros, o sorriso possível, o milagre de existir. A poesia é a forma de nomear aquilo que vemos e o modo como o compreendemos. A poesia é a narrativa da nossa essência, a beleza, a vida, o milagre entre momentos intermitentes de eternidade.

A palavra e o mundo - Mulher de Porto Pim (I)

"(...) as baleias, que mais do que animais parecem metáforas, e também os naufrágios, que na sua acepção de actos falhados e milagrosos parecem igualmente metafóricos" (1).

Mulher de Porto Pim e outras histórias é um livro reeditado em 2016 com a chancela da D. Quixote e com uma capa desenhada por Rui Garrido que nos traz um livro maravilhoso sobre "as ilhas ocidentais". Livro de 1982,  classificado pela World Literatura Today, como "uma ode aos Açores", é um objecto de grande valor cultural, que tenta trazer a paisagem, as pessoas, o mistério, o sonho, as histórias das "ilhas ocidentais", de uma forma concisa, breve e fascinante.  Mulher de Porto Pim e outras histórias é uma narrativa poética, quase um livro de viagens sobre um arquipélago atlântico, um relato e uma pesquisa de informação sobre as ilhas, as baleias, os naufrágios.

Dividido essencialmente em duas partes: I: Naufrágios, destroços, passagens, lonjuras e II. De baleias e baleeiros tem ainda um prólogo de abertura e um Apêndice, com uma nota final, um mapa e alguns livros sobre esta temática atlântica. Mulher de Porto Pim e outras histórias tem o grande mérito que caracteriza Antonio Tabucchi de misturar o real e o sonho tentando encontrar o que se revela por detrás das imagens, das palavras, dos gestos, dando aqui em pouco mais de cem páginas um quadro do sentido diferente e maravilhoso que são os Açores.


Mulher de Porto Pim e outras histórias integra horizontes de ficção com suporte de real como é o caso do texto (lindo) sobre Antero de Quental, ou misturando histórias ouvidas com o que a sua imaginação e as suas leituras permitiram construir. 
Um texto final de rara beleza, "uma baleia vê os homens" dá-nos essa ideia criada por Carlos Drummond de Andrade, a visão que os animais têm de nós. Observação que é uma metáfora sobre a forma como vivemos e usamos o espaço que habitamos. Mulher de Porto Pim e outras histórias é um livro fascinante de um grande escritor sobre um território habitado por "deuses do espírito, do sentimento e da paixão" (2).

(1;2) - Antonio Tabucchi. (2016). Mulher de Porto Pim e outras histórias. Lisboa: D. Quixote. 

segunda-feira, 20 de março de 2017

A palavra e o mundo - A Desumanização (IIA)



     Foram-me dizer que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe. O meu pai, revoltado, achava que teria sido melhor haverem-na deitado à boca de deus. Quando começou a  chover, as nossas pessoas arredadas para cada lado, ainda vi como ficou ali sozinho. Pensei que ele escavaria tudo de novo com as próprias mãos e andaria montanha acima até ao fosso medonho, carregando o corpo desligado da minha irmã.
     Éramos gémeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte. (...)
     E eu acreditei candidamente que, de verdade, a plantaram para que germinasse de novo. Poderia ser que brotasse dali uma árvore rara para o nosso canto abandonado nos fiordes. Podia ser que desse flor. Que desse fruto. (...)
     Achei que a morte seria igual à imaginação, entre o encantado e o terrível, cheia de brilhos e susto, feita de ser ao acaso. Pensei que a morte era feita ao acaso. (...)
     Nos meus sonhos imaginava jardins de crianças. As árvores baixas dos corpos, falando, brincando com os braços e os pássaros pousando entre as folhas. Os braços deitavam folhas e seguravam ninhos nas mãos e as crianças eram sempre pequenas, animadas de ingenuidade, gratas pela vida sem saberem outra coisa que não a vida. E sonhava que as pessoas japonesas vinham ao jardim contemplar, e deitavam água de regadores coloridos que lavavam os pés-raízes das crianças-bonsai. 
     Chamávamos-lhe deus ou Islândia sem ter como atribuir a cada nome um significado. As palavras eram inúteis para abordar algo que estava proibido à pequenez humana. Qualquer nome não passava de uma blasfémia, como qualquer ideia que quiséssemos guardar segura acerca da grandeza infinita de deus, da Islândia ou da morte. Somos imprudentes ao arriscar conversar acerca destas coisas, confessava eu. Descobrir o nome e o significado de deus não compete a ninguém. Deve dar-nos medo a necessidade de o entender. Deve dar-nos medo a necessidade de entender deus. Ele é o desconhecido, se por ventura se der a conhecer então é uma falsidade. (...)
    O meu pai também dizia que a Islândia era deus e era a beleza de deus. (...) Talvez não entendamos o que é belo neste preciso momento. Podemos estar absolutamente enganados acerca de tudo quanto gostamos.

Valter Hugo Mãe. (2016). A Dezumanização. Porto : Porto Editora, páginas 11, 37 e 41.

sexta-feira, 17 de março de 2017

A palavra e o mundo - A Desumanização (II)

A Desumanização de Valter Hugo Mãe é um livro de assombro que assume na escrita um continente poético de uma ilha muito especial, a Islândia. Estamos aqui perante um livro alucinante de tristeza, de solidão, mas sempre a apostar na ternura, na reinvenção do coração. É um livro que tenta também ser uma obra plástica sobre a vida, a morte e os fantasmas que nos habitam. Um livro imenso, que deveria ser  mias conhecido, mais lido, pois é simplesmente fascinante pela forma como nos interroga. A Desumanização é um livro difícil, de uma beleza tocante e que é uma declaração de amor à Islândia, ao homem e à natureza como fonte contínua de redescoberta. 

A Islândia é uma paisagem entre a desolação, a solidão nos elementos e um sentido onírico, pelas viagens que nos permite fazer, a nós, emersos num natural imenso, do tamanho da fundação do mundo. Viver na Islândia implica fazer um diálogo com esse natural. Implica fazer das forças naturais, dos elementos, dos vulcões, das montanhas de gelo formas de pensamento e ver em tudo isso formas silenciosas dos deuses. A cada instante a água, o vento, a neve nos revela que há forças vitais a suportar esse momento que parece tão próximo da fundação do dia em Deus acordou para o mundo. Só um homem capaz de entender essa vitalidade e de a reconstruir no seu quotidiano, nas suas lendas, no sentido épico poderá viver num espaço desses.

É neste enquadramento que Valter Hugo Mãe compõe uma história, onde ao lado dos elementos naturais, feitos de uma dimensão agreste nos conta uma história de amor, uma narrativa de perda e uma reconciliação com a vida. 
Juntando referências da mitologia nórdica, a conteúdos da literatura de natureza épica (Jóhann Sveinsson Kjarval) ou à música dos hinos religiosos (Hallgrímur Pétursson),  ou a referências literárias muito significativas (Thor Vilhjálmsson), A Desumanização é um obra literária cheia de natureza e de poesia.

A Desumanização é um relato comovente sobre uma criança à deriva, sobre uma aldeia perdida num fiorde, mas é sobretudo a construção de uma viagem entre esses elementos naturais, os homens e Deus. Desse Deus não organizado em sentidos oficiais, mas aquele que se revela no natural, que se revela nas coisas, aquele que nos mostra que o homem é um ser à espera de um fim, pois "tudo na vida tem a ver com a morte". A conciliação final é uma redenção feliz para um conjunto de personagens à deriva num continente de gelo e desolação. A Desumanização é um livro imenso e não será exagerado dizer-se que é uma obra-prima da literatura.

Na memória de Raul Brandão (V)

O mar está espelhado e o céu tão espelhado como o mar, com brancuras de algodão, e nuvens meio adormecidas, orladas de cinzento. Tudo tão branco e parado que parece que o tempo suspendeu a sua marcha. Olho o mar, com rastejados de caracol e pedaços brancos iluminados por dentro. Ao longe vai aparecendo e acompanha-me sempre outra ilha, São Jorge, estiraçada a todo o comprimento. Já percebi que o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente - o Corvo, as Flores, Faial, o Pico, o Pico, São Jorge, São Jorge, a Terceira e a Graciosa...

Cada vez me seduz mais pela estrada fora um campo de milho sachado e arrendado com as hastes direitas e verdes e o quadrinho vulgar das hortas, pela cor de satisfação dos legumes, pelo fio de água reluzindo em conversa com as couves, como se sentisse o benefício que lhes presta: a água parece inteligente e piedosa, e a vinha e o souto, neste grande deserto, entre a pedra devorada, representam o triunfo do homem sobre as forças brutas da natureza. (...)

Sentei-me num quintalório com japoneiras envernizadas de fresco e do tamanho de árvores, num terraço muito alto sobre o mar, e sobre o mundo. Aí fiquei horas esquecidas, envolto em poeira azul, absorto no mar cheio de reflexos de oiro, em São Jorge estendido ao sol, doirado e longínquo, cheio de crateras inofensivas e roxas, abrindo as bocas diante de mim, com um pouco de azul lá dentro. (...)

Produto de um parto monstruoso, a ilha foi devorada até ao ponto de fundir. É a dor. É a dor do mundo exposta a nossos olhos, imobilizada diante de nossos olhos - a dor descarnada e solitária, muda e trágica, sem um véu, sem um farrapo, sem um grito. Só dor. (...)

Não consigo tirar os olhos do panorama tremendo, do panorama que é um pesadelo donde extraio não sei que prazer indefinido. Tudo se despenha em catadupas de pó negro, ou fundido dum só jacto nas pareces lisas e azuladas, negras com arabescos mais escuros que parecem caracteres indecifráveis - petrificadas em cores mais ricas, dum negro cor de sangue, fundidas e entranhando-se umas nas outras até chegarem ao fundo cinzento. Um abismo - um tropel - um campo de destroços. E sobre o caos cinzento.
E isto não nos larga. Chega a impor-se a nossos olhos e fascina-nos a ossatura despida de toda a carne, não pela impressão de monstruoso ou de atormentado, mas pela beleza intelectual, pela beleza superior e grave que é a das almas.

É aqui que a luz dos Açores atinge talvez a perfeição. Nada que a distraia - só mesmo o tom no vasto quadro feito com a mesma cor, variada até ao infinito em nuances delicadas. Sobre o cinzento do mistério paira o cinzento absorto do céu - sobre a pedraria escorre o cinzento das nuvens. Ao longe o paredão imenso realça a severidade do panorama excepcional. (...)
O Pico é a mais bela, a mais extraordinária ilha dos Açores, duma beleza que só a ela lhe pertence, duma cor admirável e com um estranho poder de atração. É mais que uma ilha - é uma estátua erguida até ao céu e moldada pelo fogo - é outro Adamastor como o do cabo das Tormentas.
Apago todas as tintas do quadro: só quero o Pico diante de mim, negro, negro e dramático, roído de cinza que há-de acabar por devorar seres e coisas, deixando-o a prumo no céu, com a carcaça da catedral ao abandono na praia...

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 95, 107 e 110; Imagens - Ilha do Pico. Açores; Copyright - Andres Rueda

A arte do instante (V)

O mundo do silêncio que se desenha num tempo suspenso, como representação do instante, a individualidade de gestos minuciosos, uma arte da contemplação.
Tudo isso foi a pintura holandesa do século XVII, numa alquimia nascida do quadro e construída na representação de uma luz de natureza encantatória. Pintura também de universos femininos, num registo de memória.

A pintura holandesa do século XVII se fosse apenas um registo de memórias já era uma caso assinalável, pois reúne uma alegria pela vida que torna a pintura registada noutros impérios, com outra influência religiosa, uma representação cultural de transgressão. Os quadros de Vermeer, de Emanuel De Witte, ou de Pieter de Hoch conduzem-nos a uma característica essencial da pintura holandesa do século XVII, uma representação do feminino.
As cenas representadas, o seu fulgor em transfigurar o silêncio que acompanha pessoas e coisas centra-se no feminino. Existem poucos quadros em Vermeer em que se dispense o universo feminino e os espaços dessa intimidade, como uma admirável nostalgia do instante. Nesta representação cantrada no feminino, ou nos seus espaços, ou objetos, os homens têm um papel secundário. Estes apresentam-se como convidados de uma história, ou tão só elementos para criar um cenário, para compor uma narrativa do instante. O elemento feminino está definido no centro do quadro e toda a acção carece da sua presença.
A centralidade da presença feminina nos quadros da pintura holandesa do século XVII revela-nos a importância das descrições e dos objectos representados.  A leitura de cartas é uma das cenas mais comuns representadas. Não se trata de um efeito decorativo, mas da afirmação de um conteúdo com relação ao contexto cultural e social. A carta era um instrumento de relação social, limitada apenas pelas redes de comunicação. O império comercial holandês estendeu-se aos confins da Ásia e estima-se que entre 1595 e 1795 saíram um milhão de pessoas dos chamados Países Baixos. As cartas eram assim muito frequentes neste universo humano.

É desse mundo exterior que virão os sinais da aventura marítima, os quadros, os mapas, os instrumentos musicais, os vasos chineses, tudo isso vem de um exterior que irá alimentar os espaços interiores, na construção de um gosto e de uma expressão estética. Os quadros da pintura holandesa do século XVII são a representação de uma alegria quotidiana, a materialização poética de espaços femininos, uma espécie de "superfície do qual os homens traçaram rotas, como linhas sobre o globo" (1). 
A harmonia dos espaços habitados, construídos por uma dedicação feminina e um conforto possível por uma burguesia comercial são o fundo desta pintura. E são também um sinal da matriz pragmática e transcendente do calvinismo, como influenciadora de um fazer humano mais aberto, espelho de um refinamento civilizacional.

(1) -  Jean-Marie Tasset, 9 journées de la vie d' un Peintre. Le Figaro: Paris: Société du Figaro. 2017; Imagem - Vermeer, The Lacemaker, 1669 - 1670, Museu do Louvre, Paris.

quinta-feira, 16 de março de 2017

A arte do instante (IV)

O tempo suspenso, o instante representado, a individualidade nos gestos, um momento de contemplação e a pintura minuciosa. Uma pintura que alguns têm chamado pintura de género e que é uma representação descritiva de algo que se oferece no tempo do instante, mas também a nós. O contorno destas figuras, a materialidade absorvida na luz dá-nos um modelo interior que é uma representação particular, mas também uma alusão a pessoas e a espaços de um tempo.
Figuras que são uma evocação, mas também definem uma invisibilidade, pois elas narram emoções vividas no silêncio. Um silêncio que transcende a tela, e que compõe toda a pintura para um exercício do olhar. Especialmente com Vermeer, nota-se uma linha que conduz o quadro a quem olha, um esforço para que cada um de nós entre nesses instantes, rompendo o tempo suspenso em muitos outros.

Os dois primeiros quadros de Vermeer, Diana e as suas companheiras, de 1654 e O Cristo com Marta e Maria, de 1655 são dois quadros de abertura da sua obra que não serão representativos no conjunto da sua produção artística. Os dois quadros apresentam um outro Vermeer, não só pelas temáticas, mas também pelas cores, dominadas pelos tons quentes. Essa pintura não daria a relevância que a restante da sua obra lhe traria. Na pintura religiosa ou mitológica o seu nível de representação parece ficar aquém dos mestres desse século, Rembrandt, Velásquez ou Rubens. Vermeer descobriu um modo de superar essa dimensão dos mestres.

Vermeer tornou-se um pintor importante numa representação diferente desses mestres e que ele ensaiou, desde o seu 3º quadro, A Alcoviteira, de 1656. É a respiração da vida, os quadros de uma vida quotidiana sem representação teatral, "esse silêncio antes do silêncio" (1) que lhe vai permitir deixar o seu nome na história da pintura ocidental. Na composição humana dos seus quadros, o espaço encolhe, não tem as dimensões simbólicas da iconografia mitológica, aparecendo figuras, objetos que obtêm uma dimensão de alquimia.

Alquimia que se constrói de um conjunto de intuições representadas, de uma dimensão concisa e onde emerge todo o enigma do privado, do instante, da vida em si mesma. Vermeer dá-nos na sua pintura uma nostalgia e uma alegria, essa ideia de tempo que poderíamos conciliar na expressão, "os belos dias". Marcel Proust diria da pintura de Vermeer que ela era o que ele ambicionava para o seu À procura do tempo perdido, a descrição dos paraísos que se volatilizam na claridade do dia. A pintura de Vermeer é a procura pelo registo de uma medição, uma pulsão de vida que emerge dessa claridade.

Dessa claridade, onde nascem as histórias, as nossas, ausentes da santidade dos deuses do Olimpo e que se enebria da vida. Dela, onde descobrimos uma participação numa descoberta, a dos "bens do mundo" por nós construído. O grande alcance da pintura de Vermeer é ter feito dos seus quadros, o registo de uma Holanda do século XVII e lhe ter dotado de uma transcendência, a que repousa nos instantes e nas coisas nomeadas. A transfiguração dos episódios mais banais em algo supremo dá-nos o valor poético e nostálgico de um fazer humano, onde queremos entrar com o nosso olhar. 

(1) -  Jean-Marie Tasset, 9 journées de la vie d' un Peintre. Le Figaro: Paris: Société du Figaro. 2017.
Imagem - Vermeer, O soldado e a jovem risonha, 1658, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.

Colóquio Internacional - Raul Brandão

A Universidade Católica, no Porto, organiza entre 15 e 16 de março um colóquio internacional em homenagem ao escritor Raul Brandão. Dois mil se dezassete é o ano em que passam cento e cinquenta anos da publicação do livros "Húmus". Neste ano igualmente comemora-se o centenário do nascimento do escritor portuense. Este colóquio é organizado pela Cátedra Poesia e Transcendência e tem como ponto de partida, a apresentação do livro de Maria João Reynaud, "'Húmus', livro de um século". O colóquio reúne um conjunto de estudiosos que falarão sobre as temáticas sociais e culturais que a escrita de Raul Brandão contemplou.

Raul Brandão abordou na sua obra  a questão da pobreza e a sua relação com as questões de sociedade. O autobiografismo e o confessionalismo são modos de representar uma época e nesse sentido, a sua obra apresenta-se como uma ferramenta de conhecimento de um determinado tempo histórico e espaço social. Os itinerários espirituais e a temática do mar, no sentido da construção do natural e do sentido humano da vida são temáticas presentes na sua obra, como por exemplo em, O diário de K. Maurício e em As ilhas desconhecidas.

Nas suas obras, O Palhaço e o Pobre e em Húmus a discussão da humanidade, do seu sentido face a Deus dão-nos formas de abordar as epifanias que uma religião criou e o modo como os homens a podem viver. Há em Raul Brandão uma evidente modernidade e a eclosão do 1º modernismo tirou-lhe alguma visibilidade. Hoje, é um autor ainda muito desconhecido e, sobretudo pouco divulgado. A vinte e quatro de março, a Quetzal lança as Memórias, que é um evidente exemplo da literatura de memórias. Em abril a editora Ponto de Fuga, editará O pobre de pedir, livro há muito tempo esgotado. No mês de maio será editado, A vida e o sonho - Inéditos, antologia e guia de leitura, onde se dá conta da componente literária e jornalística da sua obra.

Na memória de Raul Brandão (IV)

A outra coisa que exerce uma verdadeira fascinação é o Pico - tão longe que a luz o trespassa, tão perto que quer entrar por todas as portas dentro. Na verdade, parece um efeito mágico de luz, um fantasma posto aí de propósito para nos iludir e mais nada.  Toma todas as cores: agora está violeta logo está rubro. Tarde, e a Lua enorme a nascer por trás daquele paredão imenso que chega ao céu. 
É majestoso e magnético. Está ali presente como um vagalhão que vai desabar sobre o Faial. Esta noite é um sonho: o cone muito nítido emerge de nuvens brancas que o rodeiam e parecem elevá-lo num triunfo ao céu. Às vezes, de Inverno, a neve brilha lá no alto com reflexos de jóias, outras são as nuvens que lhe dão formas extraordinárias. Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Ele enchia-me de vida. 

O homem que teve a ideia de bordar as estradas com estas plantas [hortenses] devia ter uma estátua na ilha. Em nenhum outro lugar elas prosperam melhor: querem luz velada, humidade e calor - estão no seu meio. O seu azul é o azul esmaltado dos Açores nos dias límpidos. Nos dias turvos substituem a cor do céu: são o azul desta terra enevoada e uma das suas maiores belezas. Imaginem o cinzento que se derrete e alastra e torna o céu mais escuro, a atmosfera mais húmida, e sob isto ao azul cada vez mais azul, as molhadas de flores duma cor cada vez mais intensa e mais fresca. 

A volta na luz da tarde é um assombro. Vejo o Salão e Pedro Miguel, todos azuis de hidrângeas; sigo extasiado pela estrada azul, com o Pico ao fundo e S. Jorge à esquerda formando uma enorme baía. É o horizonte de Nápoles mais escuro, a esta hora iluminado por uma luz rica de efeitos. Em baixo colinas, sempre colinas - não como as montanhas solenes das Flores em picos aguçados pelo raio, mas arredondados e mansos. Borbotões de azul despenham-se por todos os lados. O faial adormece em azul sob o céu de cinzento e com o Pico todo violeta ao lado. 

À noite não posso dormir; estou encharcado de azul. Vou a pé pela estrada fora sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas. Nasceu, subiu a Lua numa paz extraordinária, apagando o brilho dos diamantes, mas entre os últimos reflexos vibram os fios das vagas quebrando na costa e desaparecendo logo no boqueirão todo negro. Mais luar e o silêncio que espera de nós qualquer comunicação sobrenatural. Olho. todas as hortenses se puseram brancas, dum branco perfeito, todas as hortenses não desfitam  os olhos de mim, quietas e brancas, imóveis e brancas.1

Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 81, 82, 83 e 90.
Imagens - Na estrada da Horta para Flamengos. Ilha da Horta. Açores; Copyright - Júlio Machado