quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - Marco Polo e Kublai Kan - As cidades invisíveis (IX)

   
Kublai Kan apercebeu-se de que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a paisagem de uma para a outra não implicasse uma viagem mas sim uma troca de elementos. Agora, de todas as cidades que Marco lhe descrevia, a mente do Grão Kan partia por sua conta e risco, e desmontada a cidade peça por peça, reconstruía-a de outro modo, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os. Marco entretanto continuava a informá-lo da sua viagem. mas o imperador já não o ouvia, interrompia-o:
   - De agora em diante serei eu a descrever as cidades e tu verificarás se existem e se são como eu as pensei. Começarei por perguntar-te de uma cidade em degraus, exposta ao siroco, sobre um golfo em meia-lua. Vou falar de algumas das maravilhas que contém: uma piscina de vidro da altura de uma catedral para seguir o nadar e o voar dos peixes-andorinhas e deles extrair auspícios; uma palmeira que com as folhas ao vento toca harpa; uma praça tendo à sua volta uma mesa de mármore em ferradura, com a toalha também de mármore, posta com comidas e bebidas todas de mármore.
   -Sire, estavas distraído. Estava precisamente a falar-te dessa cidade quando me interrompeste.
   - Conhece-la? Onde é? Qual é o seu nome?
   Não tem nome nem lugar. Repito-te a razão por que a descobri: do número das cidades imagináveis temos de excluir aquelas cujos elementos se somam sem um fio condutor que os ligue, sem uma regra interna, uma perspetiva, um discurso. São cidades como sonhos: todo o imaginável pode ser sonhado mas também o sonho mais inesperado é um enigma que oculta um desejo, ou o seu contrário, um terror. As cidades como os sonhos são construídos de desejos e de medos, embora o fio do seu discurso seja secreto, as suas regras absurdas, as perspetivas enganosas, e todas as coisas escondam outras.
   - Eu não tenho desejos nem terrores - declarou o Kan -, e os meus sonhos são compostos ou pela mente ou pelo acaso.
   - Até as cidades julgam ser obra da mente ou do acaso, mas nem uma nem outro bastam para suster as suas muralhas. DE uma cidade não desfrutas as sete ou as setenta e sete maravilhas, mas sim a resposta que dá a uma tua pergunta.
   - Ou a pergunta que te faz obrigando-te a responder, como Tebas pela boca da Esfinge.

Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal, páginas 53 e 54.
Imagens - Copyright: Josh Dorman

A palavra e o mundo - Breviário Mediterrânico (II)

A filologia do mar- rico de inteligência e de poesia, no que mistura de rigor e de temeridade, (...) de precisão científica e de epifania do infinito. 

A viagem, a descoberta de novos espaços iniciou a construção do que somos como civilização. A nossa identidade forjou-se nos espaços azuis do céu, nas gotas de sal que emergem das ondas, nos portos e faróis onde nos abrigámos. Nesta iniciação ao mundo onde se erigiram descobertas e saberes, sabores, alimentos e perfumes, a Europa nasceu e por ela expandiu formas culturais ao mundo. 

Dos mares, às rotas terrestres, da mareia às fortalezas marítimas, foi a viagem pelo mar que nos fez culturalmente, como civilização. Este mar no qual nascemos para o conhecimento do mundo, por onde contactámos a história romana com a explosão grega, o desafio árabe e a afirmação europeia é o Mediterrâneo.

Predrag Matvejevitch descreveu em Breviário Mediterrânico, a luz solar, o perfume das laranjeiras, o vento silvestre no olival, onde as azeitonas e o sal fermentam os dias. Com ele aprendemos, o que sentimos nas cidades onde o mar fez soprar o seu encanto por onde perdemos a voz com as sereias. Se a viagem nos fez descobrir o que somos,o mar, com os seus rios interiores e exteriores deu-nos a alegria de redescobrir outras paisagens, outras formas de ser. 

O Mediterrâneo é esse caminho estrelar por onde o sol e a luz abrem formas particulares de organização social e económica. O Mediterrâneo, tal como a viagem, a navegação constrói-se na lenda, na geografia, no perfume alto dos pinheiros, nas encostas de figueiras onde já prenunciam as areias do deserto e nas cidades que reflectem as suas aventuras. Todas as palavras são instrumento e memória da linguagem precisa e enérgica que é o milagre do mar. Dando consistência ao particular, juntando no quotidiano as formas imaginativas da civilização. É um pequeno grande livro que constrói uma epifania de uma geografia e que completa de modo poético o livro, O Mediterrâneo de Fernand Braudel.

Imagem - Salento, na zona mais meridional da Itália Copyright - The Thinking Traveller

A vida humana (V)

O Documentário que é espelho da humanidade

O documentário “HUMAN” é a forma da humanidade se expressar como um todo! Engloba vários pontos de vista de variadíssimas culturas e de muitas e muitas pessoas! Talvez seja por isso que enquanto o visionava sentia que fazia parte de algo, parte de uma coisa mil vezes maior do que eu, sendo a generalidade a diferença! São duas mil e vinte entrevistas, em sessenta e três idiomas e de setenta países diferentes que falam sobre o amor, as mulheres, o trabalho, a pobreza, a guerra, o perdão, a homossexualidade, a família, a vida após a morte, a felicidade, a educação, a deficiência, a corrupção e o sentido da vida.
Neste documentário, não existe uma resposta igual a outra. Cada uma das pessoas que fala é memorável, é especial, é única. Resumindo, cada um destes testemunhos se destaca porque é diferente! Aprendemos com as pessoas que falam e, apesar de não as conhecermos, sentimo-nos ligados a elas!
Mostra o que ouvimos falar nas notícias ou nas redes sociais, mas desta vez sem ser distorcido, desta vez é a verdade nua e crua sobre o que é a humanidade! Depois de vermos este documentário,  ficamos a pensar que talvez devamos mesmo cuidar dos que nos rodeiam porque um dia eles não vão cá estar! Eu apercebi-me que os meus atos têm consequências para as pessoas do outro lado do mundo!
O “HUMAN” abriu-me os olhos para esta realidade que é a humanidade e, na minha opinião, penso que a temos de preservar! O “HUMAN” mostra que qualquer um de nós é capaz de fazer a diferença por muito difícil que seja! Deu esperança aos que nele participaram e mostra que neste mundo, que por vezes parece que está perdido, existe, e existirá sempre, algo que permanecerá igual, a singularidade de cada um dos que constitui a humanidade!

Teresa d’Orey

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - Breviário Mediterrânico (I)

Não sabemos ao certo até onde vai o Mediterrâneo, nem que parte do litoral ocupa, nem onde acaba, tanto em terra como no mar. Para os Gregos, de leste para oeste, estendia-se do Fásis, no Cáucaso, até às colunas de Hércules; consideravam implícita a sua fronteira natural a norte e às vezes não se preocupavam com os seus limites a sul. 
Os sábios da Antiguidade ensinavam que os confins do Mediterrâneo se situam onde a oliveira se detém. Nem sempre, nem em toda a parte é assim: há lugares na costa que não são marítimos, ou que o são menos que outros, mais afastados dela. 
Há lugares em que o continente não se alia ao mar, em que se revela difícil a concordância entre eles. Noutros pontos, o carácter mediterrânico abrange mais vastas porções do continente, penetra-as mais com a sua influência. O Mediterrâneo não é apenas uma geografia

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - Viagens (II)


"... nem cristão, , nem pagão,  sarraceno ou tártaro, nem nenhum homem de nenhuma geração viu, nem explorou tantas maravilhosas coisas do mundo, como o fez o senhor Marco Polo..."

 Viagens de Marco Polo narrados por Rusticiano de Pisa, que fez a compilação desta aventura é um dos grandes livros da História Universal.  Chamado Livro das Maravilhas conta-nos uma viagem ao interior da Ásia mais remota. Conduzidos pela ideia da descoberta e de encontrar formas de apoiar o comércio de Veneza no Mediterrâneo oriental chegaram a locais tão distantes como o Mar Negro, a Mongólia ou a China. Contactaram a Pérsia e a Arménia chegando à presença do Grande Khan, imperador chinês. Este confiando em Marco Polo confiou-lhe missões diplomáticas em terras distantes. Marco Polo foi o primeiro ocidental a chegar tão longe e a ter uma proximidade tão íntima com extensas áreas do Oriente. 

Marco Polo regressaria a Veneza. Foi numa  batalha naval entre Génova e Veneza que Marco Polo conheceria uma importante figura de Pisa, Rusticiano que compilaria as narrativas de viagem de Marco Polo sob o nome Il Milione que se traduziu num enorme sucesso. A edição francesa dar-lhe ia o nome Le Divisiament du monde (A Descoberta do Mundo) ou Livre des Merveilles (Livro das Maravilhas). A importância do livro para a época é significativo pela amostra de paisagens humanas e civilizacionais que mostra. O livro tem a grandeza de ser escrito numa abordagem quase antropológica de relato do que se observa, da diversidade humana. Não se encontram condenações morais ou religiosas, pelo que é uma rica fonte de conhecimento do Oriente no final do século XIII. 

O livro foi um sucesso pelo público a que procurava chegar, mercadores e cortes, missionários e geógrafos. Ainda o é, pela experiência que foi, pelo itinerário que nos permite conhecer e que certamente justificaria um conjunto diverso de publicações no blog, mas também pelo imaginário literário que criou. Italo Calvino criou um livro maravilhoso a que temos dado uma particular atenção, onde colocou justamente Marco Polo e Hublai Khan a falar sobre as cidades invisíveis de famosos reinos. Livro das Maravilhas de Marco Polo faz-nos lembrar uma outra viagem, a de Fernão Mendes Pinto e a sua Peregrinação.É desconcertante a diferença, pela partida com diferente motivação e de resultados também diversos. Dois séculos depois a Ásia e os homens parecem ter mudado para um sentido mais violento.  

Livro das Maravilhas é ainda uma grande livro pela lição civilizacional que nos oferece para os tempos de hoje. A sua mensagem de tolerância e curiosidade pelo mundo é ainda algo que devemos valorizar. Maravilhas do Mundo é ainda e talvez isso seja o mais importante, uma clara confiança no homem como construtor de cidades, de civilizações de trocas, de memórias, de sinais, de nomes, onde se reconhecem formas multiculculturais do viver humano.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - O nome - As cidades invisíveis (VIII)

Há um planalto que faz anunciar uma cidade. Subindo da encosta sul chegamos a ele e do de uma das suas margens avistamos uma cidade que se destaca pelas suas luzes. Irene é uma cidade que se apresenta às horas em que as primeiras iluminações se acendem, quando as habitações de fundo rosa se avistam do planalto. A cidade está rodeada de elementos, de sombras e em noites estreladas Irene é uma cidade como uma clarão que se anuncia na distância. 
O planalto que nos faz chegar a Irene é utilizado por pastores, caçadores de pássaros e eremitas. todos falam de Irene, a cidade que se anuncia como uma visão do planalto.
Os que frequentam planalto ouvem muitos sons, uns de paz e outros de guerra, uns iluminados, outros de sombras por desvendar. Este viajantes perguntam-se o que se passará na cidade, se visitar Irene nesse dia pode ser bom ou não. Perguntam-se não por quererem ir a Irene, pois os seus acessos são precários, mas porque lá a cidade magnetiza os que olham e os que pensam dos que estão fora, dos que estão na orla do planalto.
Kublai Kan aguarda a chegada de Marco Polo. Kublai Kan pretende saber como será Irene vista do seu interior. Marco não pode aceder ao pedido de Kublai Kan. A cidade destes viajantes, essa cidade que eles chamam Irene não é reconhecida por ela mesma. Mas isso que parecia importante não o é, pois Irene é apenas o nome de uma cidade observada de fora, de longe, do planalto. quando se entra nessa cidade o seu nome muda.
Afinal a cidade observada de longe, aquela em que não se entra é uma, sendo uma outra quando se é conquistado pelas suas casas, pelas suas ruas. Uma cidade a que se chega é uma cidade diferente quando se parte, ou aquela a que nunca mais se volta. Em cada forma de olhar uma cidade, há uma cidade diferente, uma cidade invisível, ou talvez os nomes dessas cidades invisíveis sejam as que conhecemos um dia sob o nome de Irene.

A partir da leitura de Italo Calvino. (2011). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal.
Imagens - Copyright: Collen Corradi

Difusão documental (16.17) - (VII)

TítuloDo céu caiu um anjo (Estados Unidos – 1946)
Direção: Frank Capra
Roteiro: Frances Goodrich; Alberta Hackett
Fotografia: Russell A. Cully
Elenco: James Stewart, Dona Reed, Jessica Chastain, ...
Duração: 130 min. 

Frank Capra foi um dos grandes realizadores de Hollywood, quando esta ainda era uma fábrica de sonhos à escala da vida humana. It´s a wonderful life, ou na tradução portuguesa, Um anjo caiu do céu é a história de um homem e de uma comunidade americana, no início do século XX. É a narrativa de um homem preocupado com  o sentido da justiça e da nobreza de valores e que por diferentes causas parece não conseguir manter esse perfil de vida. A narrativa decorre no Natal e o nosso homem por exaustão de dificuldades físicas, mentais e financeiras parece apenas votado a uma ruína pessoal e da sua família.

Não acreditando em milagres decide colocar um fim à sua vida. Um anjo, Clarence impede-o de saltar para um rio gelado. Clarence precisa de ganhar as suas asas de anjo e mostra a George a sua importância naquela comunidade, o que ela teria perdido sem a sua ação pessoal. Convencido, George regressa a casa e descobre que aqueles que ajudou no passado estão prontos para serem solidários com ele, produzindo o tal milagre e ajudando Clarence a ganhar as suas asas.

It´s a wonderful life é o mais importante filme de  Frank Capra e um dos mais deslumbrantes da sua carreira. Embora a ação decorra no Natal não é um filme sobre o Natal, mas sobre o encantamento que as vidas humanas podem ter. Embora não tenha tido grande sucesso comercial na América, quando foi estreado, o tempo dar-lhe ia a importância que tem tendo-se transformado num filme de culto. A sua temática de que o bem sempre prevalece que era uma das temáticas de Frank Capra dá-nos um sopro de esperança em tempos de grande individualismo. 

It´s a wonderful life é uma parábola sobre um tempo, sobre uma América, sobre uma sociedade que perdemos, mas que permanece muito relevante por ser um hino à vida, à solidariedade e ao amor. É um filme que nos lembra que a vida de cada um, a sua existência é o reconhecimento de significado para as coisas com que lidamos, é a significação que cada um pode encontrar na própria vida. 
Filme disponível para requisição na Biblioteca.

Difusão documental (16.17) - (VI)

10 - O Mandarim / Eça de Queirós. – 1.ª ed. – Porto : Porto Editora, 2010. - 930 p. ; 20 cm. - ISBN 978-972-0-04968-1

«Na sua obra, O Mandarim, Eça tem uma visão muito pessoal dos países orientais e da antiguidade. A sua imaginação volta a trabalhar para nos oferecer, com fina uma visão muito pessoal dos países orientais e da Antiguidade. Voltamos a encontrar a ironia numa obra de grande riqueza psicológica e onde também temos momentos de descrição sugestiva nos sonhos. Nomeadamente nos de Teodoro, da procura da sua opulência, numa viagem à China. O Mandarim é uma obra que pertence ao sonho, não à realidade, mas que caracteriza alguns dos aspetos mais espontâneos do espírito português.

11 - Matéria solar / Eugénio de Andrade ; pref. Manuel Rodrigues. – 1.ª ed. - Lisboa : Assírio & Alvim, 2015. - 78, [1] p. ; 21 cm. - (Obras de Eugénio de Andrade ; 12). - ISBN 978-972-37-1813-3

«Discreto arredio dos palcos sociais, mas humanamente fiel e afim ao devir da natureza, mãe de efémeras metamorfoses; sem transcendências, dogmas ou mitos moralizadores, Eugénio de Andrade é um exemplo excepcional, "clássico" portanto, da melhor figura do criador — e esta obra, em pequeno livro, é disso uma muito feliz demonstração.» 
- Manuel Rodrigues, no prefácio a esta edição
“A tarde sacudiu as suas crinas,
As crianças demoram-se nos espelhos,
Um amigo começa no verão, 
No íntimo despir das suas luzes.”, “6”, pág. 32

12 - Vertentes do olhar / Eugénio de Andrade ; pref. Fernando J. B. Martinho. – 1.ª ed. - [Lisboa] : Assírio & Alvim, 2016. - 87 p. ; 21 cm. - (Obras de Eugénio de Andrade ; 15). - ISBN 978-972-37-1895-9

Vertentes do olhar é um livro de Eugénio de Andrade composto por poemas em prosa, que abarcam mais de quarenta anos de produção poética do autor.
«Entre o mais antigo poema deste livro ("Fábula", 1946) e o mais recente ("A Sereia do Báltico", 1988) passaram mais de quarenta anos.
É uma vida à procura de uma voz. A melodia do homem nasce dessa busca incessante: descobre-se quando nos descobrimos. Não foi fácil: desaprender custa mais do que aprender. Estarei agora, ao menos, mais perto desse dizer que ajude outros a falar?».
- Do prefácio -
«Com os Olhos talvez um dia. Talvez um dia alcancemos essa voz, já sem o peso da luz sobre os ombros. Os olhos chegarão então ao fim da sua tarefa; os olhos, instrumentos felizes da realidade mais real. Porque ver sempre foi tocar. Tocar uma a uma cada coisa com os olhos, antes da mão se aproximar para recolher os últimos brilhos de setembro.

Vede como se afasta com fulva lentidão de tigre.»