quinta-feira, 30 de junho de 2016

A dança das Palavras (II)

Viajante

Nem rei nem lei, nem paz nem guerra
Só esta incerteza com que enfrenta o caminho.
Ninguém sabe que alma encerra
Este viajante, que caminha sozinho
Pela estrada, no nevoeiro.

Anda sem rumo de terra em terra
E canta à noite, num tom baixinho.
Nem ele sabe que sonhos tem,
Nem o o que é mal, nem o que é bem,
Nem o que alcançará primeiro.

E pede às estrelas que o ajudem
A ser inteiro.

Ana Cristina Pereira. (2010). 12º ano, Escola Secundária Stuart Carvalhais
Imagem: Copyright - Tomoe Komukai

PINA – O sentido do movimento

Dos dias em que a maior forma de aprendizagem foram esses movimentos integrados em espaços contraditórios, para se achar um lugar no mundo. Foi com o corpo que na vida experimentámos uma pintura de espanto por toda a forma de respiração. Só o encantamento constrói o sonho e ele expressava-se de modo sublime pela graça. Nessas décadas de páginas em branco e palcos claros o corpo deu-nos mais que as palavras, pois sintetizavam uma coreografia perfeita, a da intimidade do que vivíamos. O corpo foi a sua graça, a sua sabedoria.

É preciso muita sabedoria, para encantar o corpo e fazê-lo na alegria espontânea do sorriso. É preciso muito encontro de voz, para formular formas vivas de desencanto, ainda como uma sabedoria do corpo, a identidade da alma viva. Foram dias encantados pelo corpo, pela dança, por uma forma de dança-teatro que ela trazia em sonhos de precariedade e suprema alegria. O corpo sempre foi a forma mais plena de eternidade. Os poetas sabem-no e por isso são óraculos do quase dito em flores de esquecimento.

Essa forma perpétua de nos olharmos de frente para os olhos, em construções do efémero, do possível feito de abraços eternos de flores, esses que permitem sintetizar o mundo e envolvê-los em passos largos e justos. Dança sobre o amor, os mitos Orfeu e Eurídice, Café Muller, A sagração da Primavera, Vollmond ou Lillies of the Valley, ou como nós experimentámos esses mitos em danças de carne e sangue. O teatro e a vida, o amor e a liberdade, a força e a piedade, a alegria e o desespero, o encontro e a beleza. E dela vimos e aprendemos o valor imaterial do movimento, as diferentes tonalidades de uma luz única, a que nos conjugava com os dançarinos do Thanztheater Wuppertal.
Chama-se Pina Bausch, deixou de nos encantar há alguns dias de saudade e disse-nos o que filosofias inteiras desconhecem, o mundo cria-se com os outros, com o corpo

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Os sonhos mais delicados - à memória de Saint-Exupéry

Olhamos para as suas palavras e parecem-nos oráculos de sabedoria. Verificamos a sua vida e encontramos os gestos permanentes da coragem. Medimos a sua respiração e é sempre um sonho feito de consciência. Medimos a sua respiração feita de solidariedade e empenho e encontramo-nos perante as mais evidente formas de beleza. Verificamos em cada um dos seus vôos uma queda vertical contra a tirania, essa forma absurda de existir contra os outros. Bebemos nas suas palavras linhas permanentes de consciência. Uma insistente forma pela viagem, a vinculação pela aventura, a geografia do poema em cada forma de possíveis, esses laços essenciais de que a raposa também conhecia. 
Ele foi o principezinho, um continente de procura e descoberta de planetas infindáveis de sonhos, mesmo aqueles que são habitados por pequenos homens, repositórios de doenças do espírito, a visão de uma cidade sem moral, sem a inteligência dos gestos do amor mais terno. Foi, é uma figura universal e aquilo que dele vimos é que foi quase um milagre que um homem destes por aqui tenha andado, de mãos dadas com a fantasia, a única forma de ver em dias de espuma sem espanto. Nasceu há um pouco mais de cem anos em Lyon, há justamente cento e quinze e foi um escritor, um ilustrador e deu a vida pelo combate por essa doença maior do espírito, o nazismo. 
Estudou mecânica, entre 1909 e 1914 no colégio de Notre-Dame, em Mans. A partir de 1914 muda-se para a Suiça, para a cidade de Friburgo. A partir de 921 integra 0 2º Regimento de Aviação de Estraburgo. Em 1926 começa a sua carreira na aviação civil fazendo a carreira entre Toulouse, Casablanca e Dacar. Tornou-se um piloto com grande experiência no deserto, do qual diria “este silêncio não é igual a nenhum silêncio.” Morreu sobre a costa de Marselha durante a 2ª guerra mundial. Deixou uma obra de grande valor humanista, ele que era maior que o Humanismo e onde encontramos os temas que lhe ocuparam a vida. Escreveu para diferentes jornais, onde reflectiu sobre esse desastre humanitário que foi a Guerra civil de Espanha, ou a ocupação alemã da França. Da sua obra destaca-se evidentemente O Principezinho, datado de 1943, que foi escrito durante o seu exílio nos Estados Unidos. Outras obras merecem referência, as publicadas em vida e as póstumas:
Em vida:
O aviador – 1926
Correio do Sul – 1929
Vôo Noturno – 1931
Terra dos Homens – 1939
Piloto de Guerra – 1942
O Principezinho – 1943
Carta a um refém – 1943/1944
Póstumas:
Cidadela – 1948
Cartas de juventude – 1953
Cadernos – 1953
Cartas à sua mãe – 1955
Escritos de guerra – 1982
Este homem extraordinário é uma memória viva do século XX e a demonstração de como somos sempre qualquer coisa que vive dos muitos que por nós passam. O questionamento que deixou no Principezinho e a releitura que nos propõe dos nossos julgamentos, das nossas precárias formas de sucesso são uma pérola de sabedoria. A criança que fomos, um ideal para olhar o mundo com  ternura antiga e esse valor de humanidade, essa constância de eternidade que cada vida pode ser. Chama-se Antoine de Saint-Exupéry e continua por aqui, para os que ainda saibam olhar o real e as cores universais da beleza.

As cidades do espírito

Pois eu tenho visto muitas vezes a piedade se perder. Mas nós que governamos os homens, temos que aprender a sondar com seus corações afim de não ministrarmos nossa solicitude senão como objecto digno de estima. Mas essa piedade, eu a recuso nas feridas que se exibem que comovem o coração das mulheres, como recuso aos agonizantes, e aos mortos. E sei porquê. (…) 
Morada dos homens, quem te fundaria sobre o raciocínio? Quem seria capaz, segundo a lógica, de te edificar? Existes e não existes. És e não és. És feita de materiais díspares, mas é preciso te inventar para te descobrir. De mesmo modo que aquele que destruiu a sua casa com a pretensão de conhecê-la, não consegue mais que um monte de pedras, tijolos e telhas, não encontra nem sombra nem silêncio nem intimidade para o que elas serviam, e nem sabe que serviço esperar desse monte de tijolos, pedras e telhas, pois falta-lhe invenção que os domine, a alma e o coração do arquiteto. Pois falta à pedra a alma e o coração do homem. (…)
Assim sobre a virtude. Meus generais, em sólida estupidez, vieram falar comigo sobre a virtude: ‘Vocês aí, disseram-me, que os costumes se corrompem. E é porque o império se decompõe. É preciso endurecer as leis e inventar sanções mais cruéis. E cortar as cabeças daqueles que fracassarem.’ 
Eu, pensava, comigo:
‘Talvez seja preciso cortar cabeças. Mas a virtude é, de início, consequência. A corrupção dos homens é antes de tudo a corrupção do império que determina os homens. Pois se estivesse ele vivo e são, ele exaltaria a nobreza dos homens.  
Aquele que vem até mim com sua linguagem para apreender e exprimir o homem na lógica de sua exposição, parece-me semelhante à criança que se instala ao pé do Atlas com seu balde e uma pá, e formula o projeto de pegar a montanha e a transportar para outro lugar. O homem é o que é, não o que se exprime. Certamente que o objetivo de toda consciência é se exprimir o que é, mas a expressão é obra difícil, lenta e tortuosa, – e o erro está em crer que não é isso que não pode primeiramente enunciar. Pois enunciar e conceber têm o mesmo sentido. Mas é frágil a parte do homem, naquilo que eu até hoje aprendi a conceber. Mas, isso que eu concebi um dia não existia menos no dia anterior, e eu me engano se eu imagino que isso que eu não pude exprimir do homem não é digno de ser considerado.

Pois assim eu não exprimo a montanha, mas a significo [dou significado a ela]. Mas eu confundo significar e apreender. Eu significo a quem já conheça, mas aquele que a ignora, como saberei lhe transmitir esta montanha com suas ravinas de pedras rolantes e seus flancos de odores e seu topo escarpado rumo às estrelas? E eu sei quando esta não é uma fortaleza arrasada ou um barco sem direção do qual se solta a corda do anel de ferro para deslocar para onde quiser – mas existência maravilhosa com as leis de sua gravitação interna e seus silêncios mais majestosos que o silêncio da maquinaria das estrelas.
Fragments (I), (III) e (XVI) e (XXX)

A dança das Palavras (I)

O fio
Lado  a lado iam juntos,
ao calor e ao frio,
de manhã e de noite,
sem que alguém se aproximasse,
iam juntos, separados por um fio.
Pensaram em abraçar-se,
tão forte era o frio,
mas apenas caminharam,
lado a lado, juntos,
separados por um fio.

Guilherme António Fonseca. (2012). 8º ano, Escola Secundária Braancamp Freire.
Imagem - Copyright: Painting

terça-feira, 21 de junho de 2016

Nas linhas do caminho

"- Os pássaros - assegurou-lhe - voam por convicção". (1)

Caminhamos, respiramos, viajamos entre espaços pelo pelo que somos, pelos mecanismos biológicos ou pelo espírito que nos anima? Somos pessoas porque voamos entre linhas desenhadas na imaginação, caminhamos fisicamente pelo que nos é dado ou é a convicção que nos alimenta o caminho?

No contínuo caminhar que fazemos reside o nosso empenho na forma como o fazemos, nas opções que colocamos no caminho, nos instrumentos que concebemos para o sonho. Ficamo-nos na crença cega do modo como andamos, ou estimamos as possibilidades de chegar ao crepúsculo da tarde?

Na viagem que construímos é o rio que corre em nós, que nos alimenta a definição do caminho, nos faz criar os instrumentos capazes de superar os limites físicos, operacionais do corpo, para conquistar esses momentos de superação, de uma epifania de vontade e determinação. Na errância com que nos vemos, são essas cores com que pintamos o real que embelezam a respiração das auroras amanhecidas na alegria da viagem, como elemento essencial do sonho vivido.

(1) - Jose´Eduardo Agualusa, "O quarto anjo", in A Educação Sentimantal dos Pássaros).

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Top 10: Livros (3º Período - 15/16)


                     Os livros mais requisitados durante o 3º Período (leitura domiciliária)


 

  

 

 



Top 5 - Os leitores (3º Período - 15/16)

(...)
7º ano:
1. Carolina  Ferreira Fernandes;
2. Miguel Santos;
3. Maria Inês Pinto;
4. Ismael Júlio;
5. Bruna Silva.

8º ano:
1. Leonor Récio Correia Duque;
2. Branca de Salter Cid;
3. Leonor Bettencourt;
4. Carolina Santos;
5. Tiago Silva.

9º ano:
1. Tomás Ramos;
2. Inês Barros;
3. Joana Paiva;
4. Vasco Morais;
5. Beatriz Morais.

Ensino Secundário:
10º ano:
1. Maria Rita Pereira;
2. Tiago Ferreira;
3. Maria do Rosário Duarte Silva;
4. Madalena Cunha;
5. Gonçalo Alcobia.
11º/ 12º anos:
1. Madalena Mascarenhas;
2. Débora Santos;
3. Inês Duque;
4. Sofia Sequeira;
5. Simão Cramer.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Luís Vaz de Camões

No Mundo quis o Tempo que se achasse
«No Mundo quis o Tempo que se achasse
O bem que por acerto ou sorte vinha;
E, por experimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se experimentasse.
Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.
Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida pus nas mãos de um leve lenho.
Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,
Já sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho já que não a tenho».
Luís Vaz de Camões,
No Mundo quis que o Tempo que se Achasse, in Antologia Poética.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Conteúdos na rede (Uma leitora por dia) - (IV)


Uma leitora por dia - celebrar os momentos íntimos da leitura!
A leitura também foi e talvez ainda possa ser considerada uma terapia. Gwen John foi uma importante pintora do princípio do século XX, natural de Inglaterra e que pintou por diversas vezes o mesmo motivo, uma mulher em convalescença e a ler. A imagem de jovens mulheres cansadas, debilitadas e em grande esforço de recuperação é um sinal desse início de século que também provocava hipersensibilidade e doenças nervosas. A arte revelaria este estado vivido pelas pessoas. Marcel Proust considerava que a leitura poderia recuperar pessoas desse estado, sem necessidade de médico. A leitura seria para Proust um "remédio" que cada ser nesse estado conduziria em autonomia. A leitura era pois a suprema forma de uma cura de uma sociedade cada vez mais industrializada e massificada. Atualmente em países onde as bibliotecas são pioneiras de apoio a comunidades discute-se a importância de uma biblioteca de pessoas, uma biblioterapia. Pessoalmente penso que as Bibliotecas devem evoluir para esse conceito e deixarem de ser sobretudo repositórios de informação. É uma ideia que nos leva a Gwen John e ao seu quadro de 123-24.
Gwen John, A Convalescente, 1923-24
Fitzwilliam Museum, Universidade de Cambridge
‪#‎Umaleitorapordia‬

Conteúdos na rede (Uma obra de arte por dia) - (IV)

Uma obra de arte por dia - Interpretar o real!
A terminar o mês, ainda Amadeo de Souza-Cardoso!
A Imagem Irradiante parece-nos um foco de luz que ele próprio descreveu em palavras, essa iluminação da alma oculta. Amadeo foi mais que um pintor, foi uma figura fascinante que importa conhecer melhor, pela correspondência que deixou e que aqui se deixa um exemplo:
"Ontem falei no espelho, o que me sugere
hoje a ideia de falar na imagem.
Mas não é a imagem reflectida que
eu quero acentuar, é a imagem
irradiante, aquela que poderei
comparar ao disco do sol que ilumina e aquece.
A imagem do espelho
é aparente, exterior nunca
por ela pode decifrar um
só traço daquilo
a que eu chamo a minha
alma oculta.
Ao passo que a imagem
irradiante é a que como
o sol se infunde
para nos iluminar a tal
alma oculta".
Amadeo de Souza-Cardoso (2008). Catálogo Raisonné. Lisboa: Assírio& Alvim, p. 37
Pintura – Guitarra, Cera s/ tela, 35 x 29cm, c.1916
Doação de D. Lúcia de Souza-Cardoso
‪#‎Umaobradeartepordia‬

Conteúdos na rede (Um poema por dia) - (IV)

Um poema por dia - a imaginação para iluminar ou compreender o real!
"Quando, de volta, viajares para Ítaca
roga que tua rota seja longa,
repleta de peripécias, repleta de conhecimentos. (...)
Roga que tua rota seja longa,
que, múltiplas se sucedam as manhãs de verão.
Com que euforia, com que júbilo extremo
entrarás, pela primeira vez num porto ignoto!
Faze escala nos empórios fenícios para arrematar mercadorias belas;
madrepérolas e corais, âmbares e ébanos
e voluptuosas essências aromáticas, várias,
tantas essências, tantos arômatos, quantos puderes achar.

Ítacas, de Konstantinos Kaváfis.
#Umpoemapordia

Pop- up (livros de outros séculos)

 
A Biblioteca Nacional tem exposição até nove de setembro uma mostra de Pop-Up do século XIX e XX. 

....

Para ti

Ao que és:
Não reajo;
Resigno-me apática...
Tens razão.
Sou insensata.
Nunca tocas-te na minha mão.
Sou ingrata?
NÃO!
Sou um nada.
Perco-me numa constante;
Vivo enganada;
Dissolvo-me nesta podridão;
E fico calada...
Nada sei ou saberei.
Não há pureza!
Há maldade!
Não há destreza!
Há impiedade!
Nesta fome efémera,
Que destrói, rasga e profura!
Não espera, desespera!
Sim, este é o meu fim...
Degradante e silencioso.
Já não esperas por mim?
Sou nada.
Sou?

Ser é assim.

Sara Tomás de Melo Barreira Pinela, nº24, 11ºH1

O livro - Livro da semana

Não é fácil ser um livro. (...)
     Poderia dizer, com toda a justificação, que somos uma espécie ameaçada - à beira da extinção, na verdade. E, se tal acontecesse, seria uma perda incalculável porque não somos uma espécie comum. A destruição de um qualquer género e, claro está lamentável, mesmo que não passe de um raminho absolutamente irrelevante do tronco maciço da evolução um qualquer beco sem saída. Mas quando uma das únicas formas de vida inteligente que alguma vez pisaram este mundo se vê confrontada com o desaparecimento, trata-se de uma verdadeira catástrofe evolutiva.

     Ninguém com um mínimo de inteligência pode negar que, além da humanidade, nós os livros, somos os únicos seres inteligentes à face da terra. De facto, uma análise imparcial concluiria certamente que, de uma maneira geral, a nossa reivindicação é a mais correcta. Para começar, embora estejamos simbioticamente unidos aos humanos, poderíamos, em última instância, viver sem eles. Para que é precisamos deles, exactamente? 

     Para nos lerem? Trata-se de uma atividade recreativa que os beneficia apenas a eles, não a nós, de todo. Enquanto atividade física só nos causa danos - vários tipos de danos.
     E poderiam eles passar sem nós? Deus nos livre! Sem livros, qual seria a condição da raça humana? Continuariam a arrastar-se no mesmo estado, primitivo e miserável, em que os encontrámos quando aparecemos, há cinco mil anos: uma espécie conhecida pela sua capacidade de esquecer mais rapidamente as coisas do que as memorizar. Não estivéssemos nós à mão para oferecer a nossa abnegada ajuda na tarefa de memorização, não tivéssemos nós memorizado em seu nome, estes pobres seres não teriam qualquer história.
Teriam esquecido praticamente tudo. E como poderia alguém apresentar-se como um indivíduo inteligente, se não recordasse o seu próprio passado, incluindo o passado recente? Ao contrário dos seres humanos, contudo, nunca esquecemos nada. Quando aprendemos algo, esse algo permanece connosco para sempre, inexpugnável. (...) Então quem é superior? O atirador de paus e pedras, talvez?

     Mas isso não é tudo. Os humanos não são apenas esquecidos, são também pessoas de breve e fraca concentração. Em suma: as suas mentes dispersam-se. Na maior parte das situações não pensam, de todo; quando o fazem, teria sido melhor se não o houvessem feito. Para a maioria das pessoas, a vida passa sem que uma ideia brilhante - ou mesmo inteligente - lhes atravesse a mente. No caso dos raros indivíduos que são capazes de encarrilar, mais ou menos, as suas ideias, os seus preciosos pensamentos depressa ganhariam asas e voariam para longe, se não no-los confiassem para que os guardássemos.

     Somos, agora, o repositório de que tudo o que o seu circo de cem mil milhões de palhaços - que é mais ou menos o número que por aqui passou desde que desceram das árvores - conseguiu alinhavar com grande custo, tanto em trabalho como em dor. Se alguma vez decidíssemos negar-lhes acesso a esse armazém de conhecimento, teriam de começar tudo do zero. (...) Torna-se, assim, claro que é do interesse das pessoas não colocar os livros em perigo. Pelo contrário, deveriam cuidar de nós; deveriam proteger-nos e defender-nos, pois nunca lhes fizemos outra coisa a não ser o bem. Somos o seu parceiro simbiótico: damos prodigamente e quase nada pedimos em troca.

     Mas ninguém é tão engenhoso como os humanos a conceber a sua própria queda. São tão bons a fazê-lo, de facto, que temos de nos perguntar como terão sido capazes de sobreviver durante tanto tempo às suas tendências autodestrutivas. O seu comportamento põe em causa o próprio conceito de evolução. Em suma: só quando não conseguiram deitar de facto, a mão aos livros é que não lhes fizeram mal. E, sem ceder à paranóia, não é óbvio que se trata de uma conspiração - de uma flagrante conspiração, na verdade - dos humanos contra os livros? Uma conspiração que remonta ao momento do nosso aparecimento neste planeta.

(O que pensa um livro sobre o que sente um livro na sociedade humana com o modo como é tratado por leitores, livrarias, alfarrabistas, editores e bibliotecas? Zoran Živković dá-nos um livro escrito com grandes doses de humor e sátira, em que o Livro é o principal protagonista da narrativa. Livro e sociedade humana conjugam-se para ler o Homem, a sua vaidade e ambição, a sua cultura e inteligência. Como último livro da semana deixamos uma proposta recente sobre o próprio sentido mais íntimo do que é o Livro).

 Zoran Živković. (2016). O Livro. Cavalo de Ferro.

Dicas para os exames...

Os exames são sempre um ponto maior de stress para os alunos. Processo que decorre pela procura de um desempenho que materialize os que sabe e que se traduza num resultado que permita o grande objectivo - entrar num curso superior. Deixamos aqui algumas sugestões redigidas a partir de um texto publicado no Jornal Expresso, em 2014 e sintetizadas pela Psicóloga Teresa Alves Soares.
  • Programar o estudo e controlar a execução desse plano: Traçar objectivos é meio caminho andado para os atingir. Gastar algum tempo a pensar e organizar os dias de trabalho até ao exame, ou seja, fazer uma listagem das matérias prioritárias e planear dominá-las, com horários e objectivos traçados, semana a semana e dia a dia. No final de cada dia, gastar cinco minutos a verificar o que se fez e o que não se fez e o que é preciso fazer para recuperar. Estudar bem exige disciplina.
  • Testar o que se sabe: a avaliação, através de exercícios e de testes, é um auxiliar importantíssimo do estudo. Pensar sobre como responder e saber o que se errou, são fundamentais para aprendizagem.
  • Voltar atrás quando não se percebeu uma parte da matéria.  Fingir que se podem saltar obstáculos, não resulta, é um erro tremendo!
  • Decorar e perceber, perceber e decorar: a memorização ajuda à compreensão e a compreensão facilita a memorização.
  • Optar pela estratégia mais fácil, nem sempre é o melhor: saber, dominar as matérias dá trabalho e nem sempre é fácil.
  • Perante o exame, não desanimar, nem desistir: Perante a dificuldade, persistir! Quando a resposta não é óbvia, reler a pergunta e pensar um pouco mais sobre a resposta. Às vezes é preciso algum tempo entre ler a pergunta e ter uma ideia da resposta. Quando vos parecer que a resposta é demasiado fácil, não deixem de responder ou não pensem que é um truque. Acontece que algumas respostas até são simples.
  • Acrescentamos que ajuda muito, dormir bem na noite anterior e ter uma alimentação adequada, durante o período de estudo.
BOM TRABALHO!

"Ser Português..."

Os Portugueses têm algum medo de ser portugueses. Olhamos em nosso redor, para o nosso país e para os outros e, como aquilo que vemos pode doer, temos medo, ou vergonha, ou «culpa de sermos portugueses». Não queremos ser primos desta pobreza, madrinhas desta miséria, filhos desta fome, amigos desta amargura. Os Portugueses têm o defeito de querer pertencer ao maior e ao melhor país do mundo. Se lhes perguntarmos “Qual é atualmente o melhor e o maior país do mundo?”, não arranjam resposta. Nem dizem que é a União Soviética nem os Estados Unidos nem o Japão nem a França nem o Reino Unido nem a Alemanha. Dizem só, pesarosos como os kilogramas nos tempos em que tinham kapa: «Podia ter sido Portugal…» E isto que vai salvando os Portugueses: têm vergonha, culpa, nojo, medo de serem portugueses mas «também não vão ao ponto de quererem ser outra coisa».

Revela-se aqui o que nós temos de mais insuportável e de comovente: só nos custa sermos portugueses por não sermos os melhores do mundo. E, se formos pensar, verificamos que o verdadeiro patriotismo não é aquele de quem diz “Portugal é o melhor país do mundo” (esse é simplesmente parvo ou parvamente simples), mas, sim, de quem acredita, inocentemente, que Portugal «podia ser» (ou ter sido) o melhor país do mundo e (eis a parte fundamental, que separa os insectos dos cicofantas) «tem pena que não seja», uma pena daquelas que ardem para toda a vida nos peitos profundos das pessoas boas.
Ser português não é nem a sorte com que sonhamos (não queriam mais nada — nascer logo uma coisa boa!) nem o azar com que vamos azedando. Ser português é um «jeito que se aprende». Não é coisa que vá à bruta ou à má fila. Não é bem que vá a bem (precisa de ser ajudado), mas também não é mal que vá à bruxa. Ser português não é tanto ser feito à imagem de Deus, como os outros povos (todos eles felizes), como estar, à partida, «feito». Cada vez que nasce um ser humano e olha para o bilhete de identidade e verifica que calharam os pedregulhos e os pêsames da portugalidade, diz logo “Pronto — estou feito — sou português”. Devia ter juízo. A única coisa que o absolve é ter, também, razão.

Ser português é «difícil». O resto do mundo não compreende que os Portugueses são especiais, diferentes, bastante giros, bem-educados, antigos, espertos, casos sérios. O resto do mundo acredita sinceramente que o mundo seria exatamente o mesmo sem os Portugueses. Para a grande maioria da população da Terra, a própria «existência» de Portugal é uma surpresa. E não se julgue automaticamente que se trata de uma grande surpresa ou, sequer, de uma surpresa «boa». É mais uma surpresa do género “Ah, sim?”. Como quem aprende que o «baseball» teve origem nos «rounders ingleses». Ah, sim? Que giro! Agora sai da frente do televisor que eu quero ver se este Babe Ruth era tão bom como diziam. Para o resto do mundo, os feitos dos Portugueses não pertencem à história fundamental do Universo. Pertencem, quando muito, à secção dos passatempos, do “Não me digas!” e do “Acredite se quiser”. Ser português é um ser delicado. Ser português não é «ser humano». É ser que tem muito para fazer só para ser «vivo».

Os políticos dizem que é preciso andar para a frente, modernizar, desenvolver, «mudar» Portugal, presumivelmente para melhor, porque este (nisto estão todos de acordo) não presta. Os poetas sonham com países que nunca existiram ou existirão, ou que já existiram e jamais existirão outra vez. Ninguém está contente com o que é, ou com onde está, ou com o que tem. Os Portugueses, o povo, a nação, os ditos, os implicados, envolvidos e lixados, esses nem ideia têm ou fazem — para eles a própria noção de Portugal foi um raio de ideia para começar. Mas o que é preciso não é nem tão drástico nem tão espetacular. O que é preciso é «continuar» Portugal.

Continuar Portugal não é uma ação delicada, ou uma campanha urgente, ou uma tarefa que exija o sacrifício de todos os cidadãos. É simplesmente continuar a perguntar, a barafustar, a amaldiçoar o dia em que se nasceu desta cor, nesta pele, com este coração mole e fácil de apertar e espremer. Continuar Portugal é acreditar que a vida seria pior sem ele, pior se a Europa começasse pela Espanha, pior se fôssemos suíços ou belgas ou finlandeses. Continuar Portugal é ser português e dizer “Pronto, que se lixe, o que é que eu hei-de fazer?”. E acreditar na diferença que faz a nossa maneira de ser, e de sermos portugueses, como um cardiologista acredita que o coração foi feito para continuar a bater.
E foi. E, o que é mais engraçado, continua!

Miguel Esteves Cardoso. (2013). Os Meus Problemas. Porto: Porto Editora.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Conteúdos na rede (Uma leitora por dia) - (III)

Uma leitora por dia - celebrar os momentos íntimos da leitura!
Na cultura medieval as representações da Anunciação eram pouco comuns. Foi durante o Renascimento, quando a sua representação já não era uma raridade que surgiu uma das mais emblemáticas. Trata-se da Anunciação pintada por Simone Martini, de 1333. A figura de Maria aparece numa imagem sobressaltada, quase a recusar o encontro com o anjo, aconchegando o manto ao peito e mantendo o livro aberto, no sítio onde a leitura tinha sido interrompida. Estamos perante um livro de Horas. Estes livros eram utilizados como objectos pessoais de devoção e também serviam para ensinar as crianças a ler. O quadro de Simone Martini é muito importante porque introduz algo novo - a ideia e o conceito que marcará o ambiente das mulheres culturas no fim da Idade Média. Justamente, a leitura em silêncio, a procura de palavras que sirvam um estudo que é solitário, mas que permite construir ideias próprias. O sobressalto de Maria é o sobressalto de interrupção da leitura. Nesse sentido é um quadro sobre a leitura e sobre uma nova forma de construir momentos de intimidade e assim também pensamentos.

Simone Martini, A Anunciação (1333) - Uffizi - Florença -
#Umaleitorapordia