sexta-feira, 23 de setembro de 2016

A palavra e o mundo - Teoria da Viagem (II)

No começo, muito antes de qualquer gesto, qualquer iniciativa ou vontade deliberada de viajar, o corpo trabalha, à semelhança dos metais sob a canícula do Sol. Face à evidência dos elementos, move-se, dilata-se, estende-se, distende-se e varia de volume. 
Toda a genealogia se perde nas águas mornas de um líquido amniótico, esse banho estelar primitivo em que cintilam as estrelas com as quais, mais tarde, se fazem os mapas do céu, depois as topografias luminosas em que se aponta e localiza a Estrela do pastor - a primeira que o meu pai me ensinou - entre as inúmeras constelações. 

O desejo de viagem tem a sua fonte nessa água lustral e morna, alimenta-se estranhamente desse manto metafísico e dessa ontologia germinativa. Só nos tornamos nómadas impenitentes se instruídos na nossa carne nas horas do ventre materno, redondo como um globo, como um mapa-múndi. O resto revela um pergaminho já escrito. 
Mais tarde, muito mais tarde, cada qual se descobre nómada ou sedentário, amador de fluxo, de transportes, de deslocações, ou apaixonados pelo estatismo, imobilidade de raízes.

Sem o saberem, alguns obedecem a tropismos imperiais, suportam os campos magnéticos hiperboreais ou setentrionais, pendem para nascente, oscilam para poente, sabem-se mortais, é certo, mas comportam-se como fragmentos de eternidade destinada a mover-se, sobre um planeta finito - estes vivem de forma semelhante a energia que os trabalha e que anima o resto do mundo; com a mesma cegueira, os outros sentem o desejo de enraizamento, conhecem o prazer do lugar e a desconfiança face ao global.

Os primeiros gostam da estrada, longa e interminável, sinuosa e ziguezagueante, os segundos adoram o solo, sombrio e profundo, húmido e misterioso. Estes dois princípios existem não tanto em estado puro, sob a forma de arquétipos, mas em componentes indiscerníveis no pormenor de cada individualidade.

Michel Onfray. (2009). Teoria da Viagem. Lisboa: Quetzal, pág. 9-10.
Imagem: Aurora boreal, Jökulsárlón, a norte de Reykjavík, Islândia.

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