José Saramago foi um escritor invulgar por diferentes motivos. Definiu
uma escrita em moldes muito próprios, diversas vezes narrando como se o
discurso fosse do nível oral e propondo uma longa conversa. As suas frases
longas, as suas polémicas, o seu posicionamento político, as suas afirmações
sobre a espuma dos dias deu-lhe um carisma que atraiu fãs do mundo inteiro e
afastou muitos outros, por desconhecimento do seu real valor como criador de
ideias. Forjaram-se assim alguns equívocos que importa ultrapassar para que
mais pessoas cheguem ao valor intrínseco da sua escrita.
O primeiro equívoco é pensá-lo como um escritor de
romances históricos, situação surgida pelo seu primeiro êxito - Memorial do
Convento. José Saramago não escreveu romances históricos, no sentido de
devolver a respiração de uma sociedade, de um conjunto social e cultural.
Memorial do Convento é uma obra de fição sobre um tempo específico do passado,
dando-lhe o autor uma perspetiva do seu próprio conhecimento e da sua análise do
presente. Memorial do Convento é uma oportunidade para conhecer o que pensa
Saramago sobre como as sociedades se transformam e neste caso a da 1ª metade do
século XVIII. Em José Saramago, a História não é apreendida como uma certeza
credível, sendo muitas vezes considerada como uma fantasia, na medida em que
ela muda conforme as dimensões do tempo e na perspetiva das ações
concretizadas por diferentes pessoas.
Em O ano da morte de Ricardo Reis não volta
a escrever um romance histórico e medita entre um fascínio sobre a
racionalidade deste heterónimo de Pessoa e um certo desconforto por esta ideia de
satisfação pelo espetáculo do mundo. Neste sentido, coloca o ano de 1936 como
pano de fundo e procura interrogar-nos sobre a crise das consciências e o
nascimento dos autoritarismos na Europa. É uma convocação para nos
interrogar, tendo como cenário, a desordem humanitária dos fascismos europeus. É uma interrogação, a de verificar, se ainda seria possível escrever odes sobre as quais nos sentimos sábios.
Com A História
do Cerco de Lisboa, o livro onde foi mais longe na interrogação do espelho da
História, e onde cruzou espaços temporais diferenciados, o século XII e o
século XX. Nele, discute os limites da “verdade histórica”, numa narrativa que nos
devolve o homem comum, o que muitas vezes não se ouve nas narrativas da História.
Com A História do Cerco de Lisboa, José Saramago procurou dar-nos a discussão da
possibilidade de se escrever a História do Tempo Longo e essa é uma das suas
marcas como escritor. Apresenta, num tempo conjuntural, a discussão do que é
permanente nas sociedades, e de como o que vivemos e construímos vive desta
combinação, de atitudes e valores de diferentes figuras.
Aquilo que José Saramago considerou ser o âmago da
pedra, a carne e o sangue por que lutamos em si, fê-lo evoluir para um tipo de
literatura que colocou questões sobre valores importantes, interrogando-nos sobre
o que somos, que valores e preconceitos veiculamos e porque o fazemos. A abordagem de temas que tocavam crenças de muitas pessoas criaram-lhe
dificuldades. São romances desta fase, O
Evangelho segundo Jesus Cristo, O Ensaio sobre a Cegueira ou Todos os Nomes. No
Livro das Tentações, ou No Homem Duplicado, revemos a restauração da ideia que
nos devolve à pedra essencial de que somos feitos em estreita ligação ao mundo
material e à nossa memória.
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