terça-feira, 26 de abril de 2016

Saramago - A substância da palavra

José Saramago é um autor marcante das últimas décadas do século XX, tendo tido um papel de destaque na focalização da literatura portuguesa, dando-lhe palcos relevantes em diferentes continentes. 

José Saramago foi um escritor invulgar por diferentes motivos. Definiu uma escrita em moldes muito próprios, diversas vezes narrando como se o discurso fosse do nível oral e propondo uma longa conversa. As suas frases longas, as suas polémicas, o seu posicionamento político, as suas afirmações sobre a espuma dos dias deu-lhe um carisma que atraiu fãs do mundo inteiro e afastou muitos outros, por desconhecimento do seu real valor como criador de ideias. Forjaram-se assim alguns equívocos que importa ultrapassar para que mais pessoas cheguem ao valor intrínseco da sua escrita.

O primeiro equívoco é pensá-lo como um escritor de romances históricos, situação surgida pelo seu primeiro êxito - Memorial do Convento. José Saramago não escreveu romances históricos, no sentido de devolver a respiração de uma sociedade, de um conjunto social e cultural. Memorial do Convento é uma obra de fição sobre um tempo específico do passado, dando-lhe o autor uma perspetiva do seu próprio conhecimento e da sua análise do presente. Memorial do Convento é uma oportunidade para conhecer o que pensa Saramago sobre como as sociedades se transformam e neste caso a da 1ª metade do século XVIII. Em José Saramago, a História não é apreendida como uma certeza credível, sendo muitas vezes considerada como uma fantasia, na medida em que ela muda conforme as dimensões do tempo e na perspetiva das ações concretizadas por diferentes pessoas.

Em O ano da morte de Ricardo Reis não volta a escrever um romance histórico e medita entre um fascínio sobre a racionalidade deste heterónimo de Pessoa e um certo desconforto por esta ideia de satisfação pelo espetáculo do mundo. Neste sentido, coloca o ano de 1936 como pano de fundo e procura interrogar-nos sobre a crise das consciências e o nascimento dos autoritarismos na Europa. É uma convocação para nos interrogar, tendo como cenário, a desordem humanitária dos fascismos europeus. É uma interrogação, a de verificar, se ainda seria possível escrever odes sobre as quais nos sentimos sábios. 

Com A História do Cerco de Lisboa, o livro onde foi mais longe na interrogação do espelho da História, e onde cruzou espaços temporais diferenciados, o século XII e o século XX. Nele, discute os limites da “verdade histórica”, numa narrativa que nos devolve o homem comum, o que muitas vezes não se ouve nas narrativas da História. Com A História do Cerco de Lisboa, José Saramago procurou dar-nos a discussão da possibilidade de se escrever a História do Tempo Longo e essa é uma das suas marcas como escritor. Apresenta, num tempo conjuntural, a discussão do que é permanente nas sociedades, e de como o que vivemos e construímos vive desta combinação, de atitudes e valores de diferentes figuras.

Aquilo que José Saramago considerou ser o âmago da pedra, a carne e o sangue por que lutamos em si, fê-lo evoluir para um tipo de literatura que colocou questões sobre valores importantes, interrogando-nos sobre o que somos, que valores e preconceitos veiculamos e porque o fazemos. A abordagem de temas que tocavam crenças de muitas pessoas criaram-lhe dificuldades. São romances desta fase, O Evangelho segundo Jesus Cristo, O Ensaio sobre a Cegueira ou Todos os Nomes. No Livro das Tentações, ou No Homem Duplicado, revemos a restauração da ideia que nos devolve à pedra essencial de que somos feitos em estreita ligação ao mundo material e à nossa memória. 

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