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Espaço de partilha e divulgação das atividades da Biblioteca Escolar da Escola Secundária Rainha Dona Amélia
segunda-feira, 30 de novembro de 2015
Fernando ...
“I know not what tomorrow will bring” (Fernando Pessoa – last words)
Lisboa ficou como um pano de fundo, de onde ele criou universos, na modernidade dos significados que ele deu às palavras, dos sentidos diversos que a vida contemporânea pode ser. A estátua que tantos turistas visitam é um ícone pop, uma lembrança fugaz, não bebida na pele, não adormecida na essência da fragmentação que o mundo contemporâneo se tornou.
A modernidade fez-nos perder uma ideia segura do mundo, uma possibilidade de construir linhas, capazes de nos devolver uma segurança, uma ideia de futuro. Explodiram ideias, conceitos, crentes, descrentes, todas as formas razoáveis e indignas de sermos algo que nos chame de humanidade. Vestimos hábitos para os quais não estávamos habilitados, desistimos do que melhor sabíamos e de cada vez que sorrimos na multidão, uma abordagem funcionária fez-nos esconder dentro do mais puro de nós. Vestimos máscaras que não nos deram vida e quando reparámos estávamos velhos e consolados de indiferença. Somos pois testemunhas de uma fragmentação de eus, e vivemos entre o excesso de escolhas, mal formuladas, dedicadas em discursos de nevoeiro por iluminados de ocasião e um vazio.
Perdemos a voz dos deuses e ficámos estilhaçados, convencidos que em cada eu construíamos um mundo de desejos e de sucessos. Ao debatermos a unidade perdemo-la, como crianças, expulsas da magia da fantasia. É esta uma das grandes forças de Fernando Pessoa. A sua heteronímia levanta de um modo único a luta entre esse interior que se perdeu em espectáculos de excesso, de horizontes de vazio. Na fractura interior que a contemporaneidade trouxe, os eus são essa tentativa de alcançar uma unidade que não conseguimos ter, e por isso ele tanto nos disse sobre essa dificuldade de respirar, de existir no “intervalo que há entre mim e mim”.
Todos os seus heterónimos são essa forma criativa e humana de chegar ao universo e perante ele obter uma resposta. A sua poesia é a busca de uma metafísica, capaz de fazer pensar quais as formas possíveis de existir, que particulares somos. Em Alberto Caeiro «Falaram-me os homens em humanidade. Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. Cada um separado do outro por um espaço sem homens.», em Ricardo Reis «Da verdade não quero mais que a vida; que os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade.”, em Álvaro de Campos «És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?”, notamos essa necessidade de expressão individual, de pluralidade de possibilidades.
Pessoa representa esse encontro para analisar e pensar a modernidade no homem. Pensarão os turistas e o país pop e o outro, feito de modos funcionários, o que significa este homem na cultura universal, além de fotografias e sorrisos de plástico momentâneos? Pessoa é ainda e sempre a grandeza de quem viu que o pensamento é o motor maior de qualquer inteligência feita sociedade, ou conjunto de pessoas.
A modernidade fez-nos perder uma ideia segura do mundo, uma possibilidade de construir linhas, capazes de nos devolver uma segurança, uma ideia de futuro. Explodiram ideias, conceitos, crentes, descrentes, todas as formas razoáveis e indignas de sermos algo que nos chame de humanidade. Vestimos hábitos para os quais não estávamos habilitados, desistimos do que melhor sabíamos e de cada vez que sorrimos na multidão, uma abordagem funcionária fez-nos esconder dentro do mais puro de nós. Vestimos máscaras que não nos deram vida e quando reparámos estávamos velhos e consolados de indiferença. Somos pois testemunhas de uma fragmentação de eus, e vivemos entre o excesso de escolhas, mal formuladas, dedicadas em discursos de nevoeiro por iluminados de ocasião e um vazio.
Perdemos a voz dos deuses e ficámos estilhaçados, convencidos que em cada eu construíamos um mundo de desejos e de sucessos. Ao debatermos a unidade perdemo-la, como crianças, expulsas da magia da fantasia. É esta uma das grandes forças de Fernando Pessoa. A sua heteronímia levanta de um modo único a luta entre esse interior que se perdeu em espectáculos de excesso, de horizontes de vazio. Na fractura interior que a contemporaneidade trouxe, os eus são essa tentativa de alcançar uma unidade que não conseguimos ter, e por isso ele tanto nos disse sobre essa dificuldade de respirar, de existir no “intervalo que há entre mim e mim”.
Todos os seus heterónimos são essa forma criativa e humana de chegar ao universo e perante ele obter uma resposta. A sua poesia é a busca de uma metafísica, capaz de fazer pensar quais as formas possíveis de existir, que particulares somos. Em Alberto Caeiro «Falaram-me os homens em humanidade. Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. Cada um separado do outro por um espaço sem homens.», em Ricardo Reis «Da verdade não quero mais que a vida; que os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade.”, em Álvaro de Campos «És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?”, notamos essa necessidade de expressão individual, de pluralidade de possibilidades.
Pessoa representa esse encontro para analisar e pensar a modernidade no homem. Pensarão os turistas e o país pop e o outro, feito de modos funcionários, o que significa este homem na cultura universal, além de fotografias e sorrisos de plástico momentâneos? Pessoa é ainda e sempre a grandeza de quem viu que o pensamento é o motor maior de qualquer inteligência feita sociedade, ou conjunto de pessoas.
sexta-feira, 27 de novembro de 2015
Memórias de Rómulo de Carvalho - livro da semana
Título: Memórias
Autor: Rómulo de Carvalho
Edição: 1ª
Páginas: 557
Editor: Fundação Calouste Gulbenkian
ISBN: 978-972-31-1362-4
CDU: 821.134.3-94"19"
Autor: Rómulo de Carvalho
Edição: 1ª
Páginas: 557
Editor: Fundação Calouste Gulbenkian
ISBN: 978-972-31-1362-4
CDU: 821.134.3-94"19"
terça-feira, 24 de novembro de 2015
Dia nacional da cultura científica 2015
No dia nacional da cultura científica alunos do 11º ano e do 7º ano partilharam experiências e emoções em redor das ideias de divulgação científica de Rómulo de Caravlho, das suas memórias e das palavras do seu amigo, António Gedeão. Foram feitas pequenas experiências, com base no livro Física para o Povo sob a supervisão da professora Leonor. Foram escolhidas as seguintes::
Foram lidos excertos das Memórias de Rómulo de Carvalho e apresentadas algumas ideias sobre a sua vida de divulgador de ciência e professor. A terminar ouviram-se alguns podcasts e foram lidos poemas de António Gedeão. A sessão foi muito interessante pelas suas componentes de ciência e poesia e pela memória de um homem, que sendo em si muito desprendido era uma figura imensa na sua humanidade. A acabar cantou-se os parabéns a Rómulo e partilhou-se um bolo de chocolate. Talvez os alunos associem no futuro Rómulo de Carvalho e António Gedeão a esta sessão e aos sabores partilhados, assim como às ideias discutidas. É uma esperança agradável de se ter.
Formação Pordata 2015-16
Na segunda-feira passada, dia 23 de novembro, os alunos do 11º E1 tiveram uma sessão promovida
pela Pordata. Esta 3ª sessão (após duas realizadas no ano letivo passado) correu bem,
tendo os alunos ficado a conhecer o tipo de dados organizados desde a década de
sessenta em Portugal e o modo como podem ser consultados para qualquer pesquisa
que tenham de realizar. Foram feitas várias questões e sugeridas formas de
encontrar e interpretar a informação, especialmente pelas metodologias
dinâmicas que o site proporciona a quem o consultar. Foi realizada uma apresentação
pelos aspetos que a nível dos municípios ou da Europa podem ainda ser
pesquisados e dada uma contextualização interpretativa de alguns dados analisados.
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
No nascimento de Herberto Helder
I do not Know much about gods, but I think that the river
Is a strong brown god
(…)
What we call the begining is the end. (1)
Is a strong brown god
(…)
What we call the begining is the end. (1)
Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar, que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se é esse o seu tempo, quando havia ele de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo esteja real e tudo esteja certo;
E porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. (…)
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências,
O que for, quando for, é o que será que é. (2)
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar, que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se é esse o seu tempo, quando havia ele de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo esteja real e tudo esteja certo;
E porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. (…)
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências,
O que for, quando for, é o que será que é. (2)
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram. (3)
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram. (3)
No dia em que Herberto
nasceu, lembramos a sua palavra e essa angústia formal que é a morte, essa despedida da memória. Eugénio
sobre Torga tinha o consolo que tudo é efémero, só a morte é imortal, pois não
poupou o mais chegado aos anjos, esse cântico de perfeição que são as sonatas
de Mozart. Quando um poeta morre diz-se ficam as palavras. Em Herberto mais
ainda, pois ele construiu na solidão de cada momento, as faces do poema.
Esmerou-se como um carpinteiro por desenhar as palavras que a sua simbologia criou.
Ergueu uma obra para o mundo, entregou-a sem explicações, sem manifestos, sem
prémios, na reclusão da torre da palavra. Herberto tinha na reclusão a voz de
um poeta, que se afirma pelas suas palavras, pelo valor que aquelas têm, como
víamos em Baudelaire, sempre nessa atitude modernista, de fugir ao mundo, para
o apreender. Herberto trouxe uma poesia, onde as palavras emergem sobre nós,
como oráculos de mistério, sem um tempo definido, onde se advinham rituais de
tempo mágico, parecendo conduzir-nos para o espaço sagrado de uma mitologia.
Herberto recuperou nas suas palavras a sacralidade perdida num mundo
secularizado, dando uma resposta à velha dúvida de Nietzsche, da perda de Deus
e da dor antiga. Os rios, o corpo são formas vivas de um fogo que persiste, nos
espaços obscuros e de silêncio onde emergimos, para um real nem sempre possível
de integrar, pois somos feitos, na feliz expressão de António Lobo Antunes, “de
ranho e de poeira cósmica”. Pessoa e Herberto são as maiores figuras da poesia
e da literatura portuguesa do século XX. Pessoa, na dimensão única de Caeiro
vive a natureza, mas supera-a em si em cada instante, absorve o olhar brilhante
do sol de cada momento, sabendo-o que só o que existe é real. O real dá-lhe
consistência e justificação. Herberto ainda procura um valor sagrado, uma
construção de milagres, o real mais belo para a nossa respiração. Herberto
procura-se na noite vasta, no tempo imemorial, onde os pensamentos são graças
permanentes ouvidas em cada um de nós. Em Herberto há uma labuta humana, pelas
ideias que hão-de chegar ao outro, ao que procuramos. Em Herberto há uma emoção
por esse coração que naufraga num céu infinito, das crianças que em cada
esperança se renovam, nas casas, “ruas de flores” de onde imaginamos o mundo.
Há dentro de cada um de nós a flor, o fruto, a divindade, entre a racionalidade
e o sagrado mais breve, as flores que nos procuram em cada um de nós. São duas
formas infinitas, porque humanas de conceber o homem e os seus anseios mais
secretos, o fogo das palavras eternas. São duas formas gloriosas de modernidade
e de construir a língua e as palavras, essas formas breves de eternidade.
(1) - T. S. Elliot, Four Quartets.
(2) - “Poemas Inconjuntos”, in Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática, 1946.
(3) - «Tríptico». In A Colher na Boca, 1961.
terça-feira, 17 de novembro de 2015
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
O meu pé de laranja lima - Livro da semana
Título: O meu pé de laranja lima
Autor: José Mauro de Vasconcelos
Edição: 20ª
Páginas: 195
Editor: Melhoramentos
ISBN: ...
CDU: 821.134.3(81)-31"19"
...
Autor: José Mauro de Vasconcelos
Edição: 20ª
Páginas: 195
Editor: Melhoramentos
ISBN: ...
CDU: 821.134.3(81)-31"19"
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quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Os ciganos - Livro da semana
"Era uma vez uma casa muito arrumada onde morava um rapaz muito desarrumado. E o rapaz tinha a impressão de que não era feito para morar naquela casa. Ali os relógios estavam sempre certos mas ele andava sempre atrasado. (...)
E à noite abria a janela do seu quarto, respirava o vento que vinha de longe, olhava as estrelas e pensava na liberdade. Já não era um rapaz pequeno mas ainda não era um rapaz crescido. (...) À volta da casa havia um grande jardim. E enquanto Ruy era pequeno o jardim parecia-lhe enorme com as suas tílias profundas, as suas magnólias de folhas brilhantes e as suas palmeiras despenteadas.
Mas com o tempo o jardim foi diminuindo. Era como se o muro se fosse apertando lentamente como um laço. E tudo isto parecia irremediável. (...) Era o fim dum dia de Primavera. Ruy sentias-se ao mesmo tempo feliz e infeliz. A leveza do ar, a cor vermelha do poente, o brilho e a frescura das árvores, o perfume das flores, a doçura quebrada da kluz pareciam prometer-lhe uma felicidade maravilhosa. Mas ele não sabia nem como nem quando nem onde a poderia agarrar. (...)
Fontes corriam em cascata, o musgo cobria as pedras enormes, um curto vento agreste surgia entre as árvores. Ruy contemplava o vale trincando uma folha amarga de loureiro.
- Gela - disse ele chamando a rapariga do arame.
- Diz - perguntou Gela.
- É aqui que vocês moram?
- Gela olhou-o de frente.
- Nós não moramos aqui nem em nenhum outro lugar - disse ela. - Nós não moramos, nós vamos".
(São ainda algumas das palavras que Sophia deixou e que o seu neto conclui numa história, mais uma vez desenhadas sobre a capacidade que o olhar, o ver tem sobre a organização do quotidiano. Com ilustrações de Danuta Wojciechowska é um livro de grande beleza sobre o universo do mistério e do sonho que sempre procuramos aceder todos, de diferentes modos.)
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
Página de Filosofia
Os docentes da disciplina de Filosofia com a colaboração da Biblioteca criaram uma página da disciplina, para apoio aos alunos e para uma construção mais partilhada de ideias e recursos de aprendizagem. Convidam-se todos a visitar e a deixar a sua impressão, comentário ou sugestão de abordagem a algum item considerado significativo. O acesso pode ser feito aqui.
sexta-feira, 6 de novembro de 2015
Escritor do mês - Sophia
Caminho da manhã
"Vais pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão em ruínas.
Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar.
Entra no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa de pedra.
À tua direita então verás uma escada: sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu. Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles corre uma lágrima de mel.
Depois vai de vendedor em vendedor e enche os teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul, estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível".
Sophia, "Caminho da Manhã", in Livro Sexto, 1962
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Filme do mês - A hora do lobo
A hora do lobo é um filme do
conhecido Jean-Jacques Annaud e que nos reconduz a um dos períodos da história
da China e a um do seus aspetos mais perturbantes - a revolução cultural.
Da China de Mao, em 1967 chega-nos
através dessa leitura das ideologias que esquecem com frequência a humanidade,
a respiração individual das pessoas e a memória de um território.
De uma profunda beleza natural, A hora do lobo
devolve-nos paisagens naturais de grande significado sobre a Mongólia e
coloca-nos sobre o simbolismo das culturas ancestrais, isoladas. mas de uma
verdade, de significados humanos profundos. Chen Zen, um jovem estudante de
Pequim integra essa ideia de educar uma população rural isolada, no modo como a
revolução cultural sempre achou que cada indivíduo é um ser a dispensar nos
grandes valores do estado e da sua dominação ideológica.
O jovem perceberá que a comunidade
a educar tem um sentido de identidade próprio, uma cultura de território, onde
vive uma das figuras simbólicas das estepes, o lobo. A hora do lobo revela a
ligação entre os lobos e os pastores,na formulação da própria identidade do
território. A captura de um lobo pelo jovem irá desencadear uma ameaça ao
próprio sentido de existência da comunidade e a ideia burocrática do poder
central de eliminar os lobos revela-se ameaçadora e perturbante.
“A Hora do Lobo” é um filme de Jean-Jacques Annaud que surge na senda
de outros filmes sobre animais feitos pelo realizador francês (“O Urso”, de
1988, “Dois Irmãos”, de 2004”) e adapta o livro Wolf Totem de Jian Rong
(pseudónimo de Liu Jiamin).
Livro publicado em 2004, sobre a sua experiência de jovem
estudante enviado em missão “educadora” para as estepes em 1967, e que na China
se transformou no maior sucesso editorial desde O Pequeno Livro Vermelho, de
Mao Tsé-Tung. A hora do lobo realiza a adaptação do livro, Wolf Totem, e é nesse sentido um filme de uma grande beleza pelos conteúdos éticos que discute, as relações de poder, as ideologias, o território e a natureza.
História e cinema
O cinema é um das ferramentas mais interessantes para conhecer a memória, ou excertos /fragmentos dela. Ao convocar imagem,
literatura, música no sentido de apresentar uma narrativa que persegue
diferentes objetivos, o cinema auxilia-nos a conhecer universos que não foram vividos por nós. O cinema dá-nos fontes de entretenimento, apresenta-nos contextos
históricos, recria universos fantásticos e procura discutir princípios e formas
de olhar o Mundo. O cinema vive muito da oferta da arte da ficção, entre o narrado como acontecimento e a poética que evidencia formas possíveis de ver o real.
O cinema possui uma linguagem diferente de outras linguagens narrativas, pois dá através da imagem bidimensional uma leitura que procura aproximar-se das dimensões do espaço físico, onde habitamos. Na verdade o cinema sugere-nos pela sua capacidade de reproduzir som e movimento uma quase identificação com uma realidade, ainda que seja uma leitura ou uma impressão daquela. O cinema apresenta-nos uma dupla representação, dos cenários, dos actores e da própria película.
Ainda assim é um recurso de grande significado na aprendizagem de quotidianos, de movimentos históricos ou do papel do indivíduo na construção de transformações sociais e culturais. O cinema é um suporte de conhecimento que nos pode levar a compreender processos e geografias culturais, formas impressivas de olhar o mundo. O blogue da Biblioteca irá destacar um filme mensalmente. Ou como sugestão de um filme em exibição, ou como recurso significativo, no âmbito da História.
quarta-feira, 4 de novembro de 2015
Dias do Desassossego
A Fundação José Saramago e a Casa Fernando Pessoa escolheram duas semanas para celebrar a voz dos livros em diversos lugares da cidade e em boa companhia. De 16 a 30 de Novembro, são os livros que estão no centro das atenções: lançam perguntas, rebatem ideias, provocam, inquietam. As duas casas de autor, de Lisboa, apresentam para a 3.ª edição dos Dias do Desassossego um programa que cruza música, cinema, mesas-redondas, acções de animação e promoção da leitura, poesia dita, passeios na cidade - guiado sempre pela literatura. Na programação consta a iniciativa designada - O Desassossego em Coletivo: A Literatura no Espaço Público.
Esta iniciativa a decorrer na segunda quinzena de novembro vai procurar fazer da literatura uma experiência de coletivo. Esta iniciativa pretende ser uma oficina de formação, onde irão ser trabalhados textos de Fernando Pessoa e José Saramago, através de excertos escolhidos a partir de temas como a identidade, a morte, o amor, a política e a contestação. Saindo da escola, os alunos irão ler e dizer esses textos a quem passa, a quem se interroga e a quem se deixa desassossegar. Nesta iniciativa irão participar alunos da nossa escola, 0 10º H1, o 11º E1 e o 12º E1. Juntamente com a Escola Secundária Rainha Dona Amélia irão também participar alunos das Escolas Secundárias Gil Vicente e Pedro Nunes.
terça-feira, 3 de novembro de 2015
segunda-feira, 2 de novembro de 2015
Manhã submersa - livro da semana
É um livro marcante de um País, de um tempo, de uma geografia, de uma forma de construir o tempo e as sociedades humanas. É um livro que serve um projeto - a celebração do centenário do nascimento de Vergílio Ferreira. É ainda um livro que se propõe como ponto de partida para uma das provas do Concurso Nacional de Leitura para o Ensino Secundário. É um livro sobre esse fechamento de janelas que o Estado Novo personificou numa ideia orgulhosa de solidão. É uma narrativa sobre a docilidade de estruturas mentais fechadas. A circulação na hierarquização de tempos sociais restritos, onde a individualidade submerge a qualquer ideia ou respiração próprias.
"O peso da dor nada tem que ver com a
qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais. Desisto definitivamente de
me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil.
Exatamente porque toda a vida que tive sempre se me representa investida de importância que em cada momento teve. Como se eu
jamias tivesse envelhecido. Exatamente porque só é fútil e ingénua a infância
dos outros - quando se não é já criança. Estranho poder este da lembrança:
tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri: mas, a um apelo de
abandono, a um esquecimento «real», a bruma da distância levanta-se-me sobre
tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas apenas «comovente»...
Dói-me o que sofri e «recordo», não o que sofri e «evoco». (...)
Eu vivia, de resto, agora,
e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isso a partir de então que eu
descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não
sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta que eu
não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava.
Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre
o mais a importância que eu lhes dera. Chegado à realidade, muita coisa erguia
a voz por sobre mim e me esquecia. (...)
Quando algum de nós se
afastava para dentro de si próprio, logo a vigilância alarmada dos prefeitos o
trazia de rastos cá para fora. Os superiores sabiam que, à pressão exterior,
cada um de nós podia refugiar-se no mais fundo de si. Como sabiam também que a
descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força
inesperada. Nenhuns sonhos se negavam ao apelo da nossa sorte, aí na nossa
íntima liberdade. Por isso nos expulsavam de lá. Mas, uma vez postos na rua,
havia ainda o receio de que as nossas liberdades comunicassem de uns para os
outros e ficassem por isso ainda mais fortes. E assim nos obrigavam a
integrar-nos numa solidariedade geométrica, ruidosa e exterior como de ladrilhos". (...)
- Vergílio Ferreira - Manhã Submersa -
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