segunda-feira, 23 de novembro de 2015

No nascimento de Herberto Helder

herbertohelder
I do not Know much about gods, but I think that the river
Is a strong brown god

(…)
What we call the begining is the end. (1)

Quando vier a Primavera,
Se eu já estiver morto,
As flores florirão da mesma maneira
E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.
A realidade não precisa de mim.
Sinto uma alegria enorme
Ao pensar, que a minha morte não tem importância nenhuma.
Se soubesse que amanhã morria
E a Primavera era depois de amanhã,
Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.
Se é esse o seu tempo, quando havia ele de vir senão no seu tempo?
Gosto que tudo esteja real e tudo esteja certo;
E porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. (…)
Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências,
O que for, quando for, é o que será que é
. (2)
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram. (3)


No dia em que Herberto nasceu, lembramos a sua palavra e essa angústia formal que é a morte, essa despedida da memória. Eugénio sobre Torga tinha o consolo que tudo é efémero, só a morte é imortal, pois não poupou o mais chegado aos anjos, esse cântico de perfeição que são as sonatas de Mozart. Quando um poeta morre diz-se ficam as palavras. Em Herberto mais ainda, pois ele construiu na solidão de cada momento, as faces do poema. Esmerou-se como um carpinteiro por desenhar as palavras que a sua simbologia criou. Ergueu uma obra para o mundo, entregou-a sem explicações, sem manifestos, sem prémios, na reclusão da torre da palavra. Herberto tinha na reclusão a voz de um poeta, que se afirma pelas suas palavras, pelo valor que aquelas têm, como víamos em Baudelaire, sempre nessa atitude modernista, de fugir ao mundo, para o apreender. Herberto trouxe uma poesia, onde as palavras emergem sobre nós, como oráculos de mistério, sem um tempo definido, onde se advinham rituais de tempo mágico, parecendo conduzir-nos para o espaço sagrado de uma mitologia. Herberto recuperou nas suas palavras a sacralidade perdida num mundo secularizado, dando uma resposta à velha dúvida de Nietzsche, da perda de Deus e da dor antiga. Os rios, o corpo são formas vivas de um fogo que persiste, nos espaços obscuros e de silêncio onde emergimos, para um real nem sempre possível de integrar, pois somos feitos, na feliz expressão de António Lobo Antunes, “de ranho e de poeira cósmica”. Pessoa e Herberto são as maiores figuras da poesia e da literatura portuguesa do século XX. Pessoa, na dimensão única de Caeiro vive a natureza, mas supera-a em si em cada instante, absorve o olhar brilhante do sol de cada momento, sabendo-o que só o que existe é real. O real dá-lhe consistência e justificação. Herberto ainda procura um valor sagrado, uma construção de milagres, o real mais belo para a nossa respiração. Herberto procura-se na noite vasta, no tempo imemorial, onde os pensamentos são graças permanentes ouvidas em cada um de nós. Em Herberto há uma labuta humana, pelas ideias que hão-de chegar ao outro, ao que procuramos. Em Herberto há uma emoção por esse coração que naufraga num céu infinito, das crianças que em cada esperança se renovam, nas casas, “ruas de flores” de onde imaginamos o mundo. Há dentro de cada um de nós a flor, o fruto, a divindade, entre a racionalidade e o sagrado mais breve, as flores que nos procuram em cada um de nós. São duas formas infinitas, porque humanas de conceber o homem e os seus anseios mais secretos, o fogo das palavras eternas. São duas formas gloriosas de modernidade e de construir a língua e as palavras, essas formas breves de eternidade.
(1) - T. S. Elliot, Four Quartets.
(2) - “Poemas Inconjuntos”, in Poemas de Alberto Caeiro. Lisboa: Ática, 1946.

(3) - «Tríptico». In A Colher na Boca, 1961.

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