É um livro marcante de um País, de um tempo, de uma geografia, de uma forma de construir o tempo e as sociedades humanas. É um livro que serve um projeto - a celebração do centenário do nascimento de Vergílio Ferreira. É ainda um livro que se propõe como ponto de partida para uma das provas do Concurso Nacional de Leitura para o Ensino Secundário. É um livro sobre esse fechamento de janelas que o Estado Novo personificou numa ideia orgulhosa de solidão. É uma narrativa sobre a docilidade de estruturas mentais fechadas. A circulação na hierarquização de tempos sociais restritos, onde a individualidade submerge a qualquer ideia ou respiração próprias.
"O peso da dor nada tem que ver com a
qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais. Desisto definitivamente de
me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil.
Exatamente porque toda a vida que tive sempre se me representa investida de importância que em cada momento teve. Como se eu
jamias tivesse envelhecido. Exatamente porque só é fútil e ingénua a infância
dos outros - quando se não é já criança. Estranho poder este da lembrança:
tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri: mas, a um apelo de
abandono, a um esquecimento «real», a bruma da distância levanta-se-me sobre
tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas apenas «comovente»...
Dói-me o que sofri e «recordo», não o que sofri e «evoco». (...)
Eu vivia, de resto, agora,
e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isso a partir de então que eu
descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não
sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta que eu
não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava.
Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre
o mais a importância que eu lhes dera. Chegado à realidade, muita coisa erguia
a voz por sobre mim e me esquecia. (...)
Quando algum de nós se
afastava para dentro de si próprio, logo a vigilância alarmada dos prefeitos o
trazia de rastos cá para fora. Os superiores sabiam que, à pressão exterior,
cada um de nós podia refugiar-se no mais fundo de si. Como sabiam também que a
descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força
inesperada. Nenhuns sonhos se negavam ao apelo da nossa sorte, aí na nossa
íntima liberdade. Por isso nos expulsavam de lá. Mas, uma vez postos na rua,
havia ainda o receio de que as nossas liberdades comunicassem de uns para os
outros e ficassem por isso ainda mais fortes. E assim nos obrigavam a
integrar-nos numa solidariedade geométrica, ruidosa e exterior como de ladrilhos". (...)
- Vergílio Ferreira - Manhã Submersa -
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