segunda-feira, 16 de março de 2015

A memória de Natália

"Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficamos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.
E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo" ( "IX", in Poemas)


Natália nasceu nas ilhas de lava e fogo, há um pouco mais de noventa anos, para nos dar uma poesia e uma criação da palavra capaz de nomear as coisas, a vida, a memória, as experiências do quotidiano com um ousadia apenas possível para os que buscam a identidade intrínseca de do real. Deixou-nos fisicamente há justamente vinte e um anos e para quem a conheceu, o seu espírito era de uma ousadia permanente. 

Percebeu antes de todos, que a banalização, a falta de rigor, a ausência de consciência e de memória fariam saltar as mais gritantes formas de injustiça. Ousou sobre um País cinzento, com paixão, "o corpo do amor", essencial a qualquer criação, para buscar a inocência perdida das crianças, no espanto inicial de saber olhar. A sua inteligência, a sua ousadia, a sua liberdade criativa serão sempre uma memória do País cinzento, que das praias de lava ousava  o abraço e o beijo de outros encontros, capazes de redimir o Homem.

Escritora, poetisa, participou na luta contra o Estado Novo, tendo livros como Canto do País Emerso ou Satírica proibidos pela censura. Defendeu como poucos o património da língua portuguesa, na senda da célebre ideia de Pessoa e a importância do património cultural. Fez da sua tertúlia da liberdade um ponto de discussão e promoção de direitos humanos. Falou das mulheres com um sentido mágico, lutando no final dos anos oitenta por ideias essenciais da participação da mulher na sociedade. Foi deputada, mas nunca se submeteu aos valores do carreirismo político, tendo a sua vida literária tido pontos de contacto com figuras como António Maria Lisboa ou Cruzeiro Seixas.

Natália foi sempre ela própria, onde conciliava conhecimento enciclopédio com os rasgos de originalidade, numa composição de profunda energia. Com Dimensão encontrada (1957) e Comunicação (1959) revelou uma exuberância lírica que acompanhava a sátira, onde se notavam o desejo de chegar à utopia, à fantasia. à vida plena que queria usufruir plenamente. Morreu num tempo em que esse mundo de uma construção pelo conhecimento, uma sociedade participada caía nos escombros do individualismo. Quem assistiu à declamação das suas poesias, percebe como só da pátria de lava e fogo poderia fazer nascer uma voz tão livre e tão próxima do coração da terra.

Sem comentários:

Enviar um comentário