sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Em nome da Terra - Livro da semana

Título: Em nome da Terra
Autor: Vergílio Ferreira
Edição: 1ª
Páginas: 272 p.
Editor: Quetzal
ISBN: 978-972-5647-912
CDU: 821.134.3-31"19"

Sinopse: A Primavera, o fresco. Ou talvez a deusa Flora para ser mais corpórea contigo. Mas é um corpo transcendente até à sublimidade. Tu tinhas mais peso do que isso, querida. Mas eu preciso agora tanto de seres divina. Transcendente irreal. Dissolúvel e vã – deixa-me ser infantil. Mesmo o amor só começa a existir assim, é dos livros. Metafísico disparatado. Abaixo disso tem já outro nome que vem na fisiologia. Preciso ardentemente de irradiar o teu corpo a tudo quanto baste para ser divino. Vou construir uma religião que não há. Vou ser sublime e atrasado mental. Um corpo. Minha querida Mónica, o corpo ainda não existe e é preciso empenharmo-nos todos com ardor para que exista. Porque o que existe é só a porcaria de um bocado de carne que deve vender-se nos talhos dos antropófagos. Ou então existe só o que nele não existe e se transacciona nas sacristias da província. Meu amor, deixa-me dizer-te. Agora que estás morta – e como tudo foi longo. A gora que arrumaste as coisas. É uma deusa linda num instante do seu movimento leve, mas não se lhe vê a face. Porque a beleza não é dela mas da leveza do seu passar. Vê-se de costas, a face um pouco voltada só até à visibilidade do seu contorno doce. Colhe à passagem uma flor sem se deter, no ondeado da aragem que a leva. E na outra mão segura contra o peito um açafate de mais flores. Mas tudo nela é aéreo e dócil. A túnica cor de argila, ondeante até à mobilidade subtil dos seus pés nus, uma alça descaída no ombro direito.
Um manto branco tombado dos braços para as costas num suporte negligente. O cabelo apanhado na nuca, a zona mais delicada para a ternura de um homem. E uma fita com auréola a segurá-lo. E o imponderável de todo o seu ser de passagem. Mas era o que sobretudo eu gostaria de te dizer desta deusa grave e aérea. Não bem o seu corpo esbelto como um voo de ave, mas só esse voo. Não bem a sua juventude eterna mas a eternidade. Não o gracioso dela mas a graça. Olho-a infinitamente para tu lá estares e ouço-te rir porque não estarias nunca. Fito-o e filtro-o para ficar comigo o seu impassível até à morte.
O jeito breve dos pés que não pisam. Os dois dedos subtis que colhem a flor sem a colherem e são nela há dois mil anos a flor que não colheram. A anca doce em movimento, o etéreo da sua divindade. A moldagem do seu corpo vaporoso pelo zéfiro que a leva. O deslizar do manto e da túnica que não deslizam, para a nudez não ser de mais. E a espádua nua para se começar a sabê-la e ela ir existir numa avidez assustada. E o cabaz de flores com que leva a alegria consigo. E o espaço verde e vazio para que nada mais aconteça além de si. Olho-a ainda, olho-a sempre. Passa aérea e de costas. E assim a sua beleza é invisível, no anúncio do que jamais poderemos ver. Assim a sua beleza é a mais bela porque está perto e longe, na realidade tangível e intocável de sempre. Na face oblíqua do que jamais saberemos a face. No olhar que inunda todo o corpo como é próprio de todo o olhar mas de que jamais saberemos os olhos donde vem a torrente. No seu corpo de deusa e no enleio do seu movimento que jamais saberemos ter nas mãos porque a sua realidade é o passar. Nas flores que leva e colhe e jamais colherei nas minhas mãos grossas e mortais. Tenho de deixar de olhar esta deusa efémera no breve instante de ser deusa, tenho de ir ter contigo ao fundo do corredor talvez,…

Ver
gílio Ferreira. (1990). Em nome da terra. Lisboa: Quetzal, páginas 127-128.
Ima
gem – ©: Deusa Flora – Representação de um fresco de Pompeia.

Sem comentários:

Enviar um comentário