O 25 de Abril é uma data incontornável do século XX português. Para as novas gerações essa data surge com a distância com que ouvem falar de outras que são objeto de estudo. O 25 de Abril surge como uma data tão próxima como a Revolução Francesa ou Americana. A sua proximidade não lhe traz mais possibilidades. O País hoje é outro e a memória não é muito exercitada. O tema aparece com sorte duas, três vezes entre o início do Básico e o fim do Secundário.
Esses foram dias de uma alegria muito viva, dias onde a manhã como disse Sophia parecia nascida de encontro a todas as possibilidades, a toda a criação nossa, "a substância do tempo." Baptista-Bastos escreveu há anos um texto curto e que nos dá a ideia dessa alegria formadora de possibilidades. Desse dia a memória de um homem, dos mais raros que o País alguma vez teve e que tentou iluminar um caminho, como Sophia disse, "a partir da página em branco". O homem que ofereceu o seu gesto sem nada receber. Foi ele o herói de uma alegria. Salgueiro Maia foi esse homem do mais genuíno e puro que pode significar o amor aos outros. Abaixo, o texto de Baptista- Bastos.
Contarás
de Abril, aos meus filhos, que os meus olhos ardidos, urbanos, ficaram cheios
de um ofício de dizer coisas singelas, humildes: como amor, liberdade. Contarás
de Abril os idos e os que voltaram, os que ficaram e ficam. Contarás de Abril
pequenas pilhas de palavras, armazenadas numa necessidade que inventei; e as
nossas almas ledas e limpas: e os braços que se estendem a outros abraços; e a
cordialidade de anotarmos um nome, um número, uma flor: e os balaios sem
reticências de mágoas, cheios de trissos de aves, de pássaros remotos de que
ignorávamos a voz ou havíamos esquecido o toque e a fímbria.
Contarás de Abril
que na nossa terra já não apodrecem as raízes e que já não adiamos o coração;
que já não nos dói a velhice e que os rios são todos nossos e íntimos e que já
não perdemos a infância e que nascem crianças insubmissas e claras e livres.
Contarás de Abril a espessura mágica, o punho reflexo, o dia de água, a
lágrima, a vontade de sermos e de estarmos, o límpido grito, a forma
inconsútil, o vermelho e a brisa, o livor das coisas, a maravilha discreta de
assear a vida, o caminhar, os restos nesta dócil pausa e neste imenso perdão.
Contarás de Abril as casas de mil sóis, a imponderável descoberta dos
sussurros, a brancura inadiável da perseverança, o resplandecente varar dos
dias, a feira alvoroçada das horas. Contarás de Abril as mãos dadas. Contarás
de Abril o renascer da essencial frescura.
Baptista-Bastos,
"Contarás 25", in O Diário, 25-4-90
Para um conhecimento do que foi esse dia, um conjunto de materiais sobre o 25 de Abril, de modo a proteger a memória. Aqui.
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