Lembrando uma data que é uma inspiração
para todas os dias – O livro, o dia mundial do livro – dia 23 de abril de cada
ano.
Fui ver a minha nova estante logo pela
manhã.
Era um bocado de espaço arranjado entre
tralhas meio esquecidas. Fiquei ofendido. Os livros não esquecem nada. Eles são
sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria
natureza. Embora, na verdade, eles nem se devem importar, porque podem esperar
eternamente. (...)
As histórias podem comer muitas
palavras.
Pensei: os meus queridos livros. Era o
que eu pensava e sentia: os meus queridos livros. Olhava-os como se estivessem
vivos e pudessem sofrer. Como se pudessem também entristecer.
Gostei de colocar a hipótese de os
livros serem como bichos. Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são
objectos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos
profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam
mais a uns do que a outros. Têm uma preferência. São inteligentes e reconhecem
a inteligência.
Os livros estão esbugalhados a olhar
para nós. Quando os seguramos, páginas abertas, eles também estão esbugalhados
a olhar para nós. (...)
A primeira vez que vi um livro, que me
lembre, era um que estava aberto, pousado sobre a mesa, com as folhas em leque
como se fossem uma colorida flor contente. (...) Depois, compreendi, era o modo
silencioso das conversas. Todos os livros são conversas que os escritores nos
deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo
que tenham morrido há tantos anos.
A morte não importa muito para os
livros.
Mais tarde, aprendi que os livros
acontecem dentro de nós. Claro que eles podem ser bonitos de ver, mas são
sobretudo incríveis de pensar. Eu disse ler é como caminhar dentro de mim
mesmo. E é verdade. Quando lemos estamos a percorrer o nosso próprio interior.
Uma menina do colégio perguntava-me
sempre se eu queria brincar às coisas bonitas. Brincar de beleza, dizia assim.
Era igual a ficarmos cheios de delicadezas a fazer de conta que adorávamos
tudo: os puxadores velhos das portas, os livros de álgebra, as meias rendadas
da professora, a sopa de beterraba à hora do jantar no refeitório ou o cão
zangado do guarda nocturno. Servia de maneira divertida para fazermos de conta
que o mundo era maravilhoso e, subitamente, o mundo inteirinho parecia mesmo
maravilhoso. Isso era tão bom de sentir.
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