Os livros são perigosos porque são aceleradores e intensificadores da
nossa experiência humana, abrem portas e janelas que nem sequer sabíamos que
existiam, são surpreendentes encontros de vida. Ao mesmo tempo são cúmplices
inesperados da nossa aventura humana. Cada um de nós é também os livros que
leu, os autores que encontrou. Os livros são esse alargar de horizontes que
permitiram aquele encontro mais secreto e profundo com a nossa voz. O ato da
leitura é um ato de exposição, mesmo quando parece muito inocente acaba por ser
uma aventura da qual nenhum de nós sai verdadeiramente igual à forma como
entrou.
A minha primeira
biblioteca foi a minha avó, analfabeta, mas sabia romances de cor e era um
encanto escutá-la. O que formou a minha alma foi a leitura dos poemas, que é
feita mais de intensidade e de fulgores. A poesia dá-nos mais espaço para o
silêncio, é como um relâmpago a que se segue muita outra coisa, que é da
construção do leitor. A oração diária do livro dos salmos foi música no meu
ouvido. A leitura da poesia foi uma espécie de iniciação ao ato de ler. Penso
que a poesia é uma ordem mendicante, os poetas são mendigos do real. Por vezes
temos uma atitude de dominação sobre as coisas e os outros, mas se cairmos em
nós percebemos que somos e sabemos pouco. A aceitação dessa escassez é
fundamental para nos abeirarmos do mundo de outra forma.
Acontece pensarmos que o
nosso tempo se destacou como uma jangada de pedra ou metafísica da história
humana, e acreditamos que somos radicalmente outra coisa diferente do que os
homens foram, do que gravaram na pedra, do que escreveram. E de repente, ao
lermos textos antigos e contemporâneos, percebemos que estamos muito próximos
dos nossos antepassados, que são, de certa forma, também os nossos sucessores.
Job, por exemplo, o homem
do protesto, que não aceita as respostas fáceis em relação ao sofrimento, que
desentende o sentido de o homem justo ter de penar neste mundo; e quer falar
diretamente com Deus, e Deus aceita essa espécie de duelo verbal com Job. Com a
forma como esse livro está escrito, a sua arquitetura, as suas palavras, a
raiva, percebemos que estamos inteiramente ali, aquelas palavras são as que nós
diríamos.
Não consigo separar a
sabedoria do amor; a sabedoria é uma inteligência, uma ciência, uma arte, mas é
tudo isso como uma forma de amar. Quando pensamos na grande sabedoria, pensamos
naqueles que, vivendo a grande depuração que o tempo opera em cada um de nós,
são capazes de conservar uma inocência, uma pureza, um afeto. É sempre
necessária uma porção muito grande de amor para chegar à sabedoria.
S. Paulo, no momento da
conversão, ficou cego para começar a ver. A cegueira é uma metáfora de uma
outra visão. É necessário um apagamento, um corte. Quer a experiência da
tradução quer a da criação literária nasce de um corte primordial, que é muitas
vezes a contemplação do mundo, o espanto perante o real. Esse corte obriga-me a
ver as coisas de outra forma. Há que apagar o modo imediato, comum, mais óbvio
e aceitar a escuridão, aceitar que não vemos, só tateamos.
Jesus perguntava: «Como
ousas dizer ao teu irmão: “Deixa-me tirar o argueiro da tua vista”, tendo tu
uma trave na tua?». Este exercício de humildade em relação à vida é muito
importante para o ato da criação. Por outro lado devemos perceber que na
escuridão nós vemos. Em criança temíamos o escuro, e mais tarde aprendemos que
no escuro vemos muitas coisas que nele se revelam. E aceitamos como preciosas essas
coisas que percebemos dessa forma. Há que ensaiar novas visibilidades, novas
formas de compreensão do mundo, sabendo que a sabedoria pede de nós uma fome e
sede inesgotáveis. Comove-me muito que o professor Eduardo Lourenço esteja aqui
a tomar notas na primeira fila. É essa curiosidade infinita pelo mundo e pelos
outros que é sabedoria, que creio ser a mais elevada forma de amor.
A relação pedagógica é uma grande paixão. É muito
interessante ver chegar uma geração de estudantes. Em Teologia tenho o privilegio
de não ter turmas muito grandes, é possível acompanhar o percurso de cada
aluno. Isto é para mim muito estimulante. O trabalho do professor é muito do
semear. Há coisas que vemos mas o mais importante é, por vezes, o que não
vemos. Isto aproxima-se muito de uma definição que gosto muito de amor: amar é
não controlar o que o outro vai fazer do amor. Há testes e exames, e aí o
professor pode avaliar, mas sabemos que os percursos mais fecundos aconteceram
para lá dos resultados: foi uma marca, um estímulo, uma palavra, um despertar
que depois se tornou uma âncora para a vida e fez a diferença. Aprendo muito
com os estudantes, e o que me interessa é passar um método, uma paixão por um
determinado assunto, porque sei daqui a 10 ou 20 anos eles falarão deles com
outras palavras, citando outros autores, mas o entusiasmo será o mesmo.
Quanto mais inúteis são as coisas de que me ocupo,
mais feliz me deixam.
"A sabedoria dos livros" - Encontro entre José
Tolentino Mendonça e Frederico Lourenço,
Festa do Livro. Jardins
da Presidência da República, Lisboa, 2.9.2016
Imagem - Copyright:
Gustav Adolph Hennig, Lesendes Mädchen, 1828