A
palavra e o mundo tem-nos trazido durante alguns meses numa viagem pela literatura de
viagens, e igualmente na descoberta de obras que nos conduzem pelo mundo com as
as palavras, ou fazendo-as nascer nessas viagens. A Ilíada será um dos
casos mais substantivos desta ideia de relação entre a palavra e o mundo. A
Ilíada é na forma um conjunto de poemas, como a Odisseia também o
foi. As duas obras, cuja data certa ignoramos forjaram o espírito grego nessa
ideia de que a Poesia com os seus cantos era uma forma de educação de um povo,
de uma cultura. As duas obras procuraram forjar uma ideia de educação, uma
integração de comunidades humanas numa forma de sociedade.
Os
dois poemas são os dois testemunhos literários mais antigos da civilização
grega e a sua autoria é entregue a Homero num período que se pode situar entre
os séculos IX e VIII a.C., com o progressivo domínio da escrita e
estabelecimento das polis. As epopeias homéricas retratam em seus cantos, os
costumes, as formas de vida das populações micénicas. Nelas vemos as famílias
aristocratas e a sua fundação através de um herói. A guerra dos Aqueus contra
Tróia é só um exemplo desta construção de um poder que se fundasse num herói,
ou tivesse alguma ligação ao divino. Importa reter que estes poemas homéricos
formaram a paidéia, a língua, as artes e a construção religiosa sublimada nos
deuses do Olimpo. A formação educativa e ética dos Gregos passou por estes
textos, tal como a sua ideia de um cidadão que se desejava justo e sábio.
As epopeias
homéricas representam momentos distintos. A Ilíada é do tempo da guerra,
dos heróis e a Odisseia, dos homens que já têm uma cidade a que se ligam, que fazem viagens,
navegam pelo Mediterrâneo, alargam uma civilização. Na Ilíada, a figura central
é o guerreiro. A sociedade e o comportamento dos homens não está voltado para a
vida pública. Concentra-se, antes na guerra e nas suas atitudes face a
ela. A figura do
herói aparece sempre inserida numa batalha e é ela que determina as suas
virtudes, como coragem, lealdade, ou espírito de luta. No herói o mais
importante são a luta e a vitória e é da sua valentia que nasce o respeito de
todos. Parecendo uma narrativa distante, o que nos diz A Ilíada aos nossos
valores contemporâneos?
A Ilíada traz-nos Heitor e Aquiles, traz-nos a dor de que se reveste o
mundo, a capacidade para a entender, no sentido que ela é inseparável da
existência humana. A Ilíada é um poema que revela "uma cólera", uma
luta por uma conquista, mas diz-nos mais do que isso. Diz-nos que é preciso
entender o sofrimento humano e que não é possível pensar a vida, vivê-la e
estar à sombra desse sofrimento. Os valores que importam podem obrigar a uma
luta, onde ele entre nós e temos de o descodificar, de o compreender, de o
materializar em nós.
A Ilíada é no fundo
uma forma diversa protagonizada por Aquiles e Heitor sobre como responder a
essa condição de sofrimento que está presente no mundo humano. Neles vemos uma
luta entre uma defesa de algo, de valores, embora a cólera de Heitor seja mais compreensiva,
pois está a lutar pelos outros. Aquiles compreenderá que a dor fica, mesmo
quando vinga Pátroclo matando Heitor e apenas na restituição aos deuses tem um
apaziguamento dessa dor.
Aquiles tem
no seu encontro com Príamo um conforto por esse sofrimento que viveu. Aquiles
compreendeu que a vida tem custos e que qualquer batalha, mesmo com os valores
de um herói pode significar uma perda. A vida não pode fugir a isso, ou nós
nela. Na batalha de Tróia, os Gregos receberam a lição maior de um
herói, Heitor pela defesa de uma cidade, de um conjunto de
pessoas, o valor do altruísmo. Aquiles compreendeu que na natureza humana a
ausência de sofrimento não é uma garantia, independentemente do ethos de quem
combate. É por esta envolvência que A Ilíada é um texto intemporal, uma
construção de mundos através das palavras de Homero.
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