segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - A Ilíada - (II)


A palavra e o mundo tem-nos trazido durante alguns meses numa viagem pela literatura de viagens, e igualmente na descoberta de obras que nos conduzem pelo mundo com as as palavras, ou fazendo-as nascer nessas viagens. A Ilíada será um dos casos mais substantivos desta ideia de relação entre a palavra e o mundo. A Ilíada é na forma um conjunto de poemas, como a Odisseia também o foi. As duas obras, cuja data certa ignoramos forjaram o espírito grego nessa ideia de que a Poesia com os seus cantos era uma forma de educação de um povo, de uma cultura. As duas obras procuraram forjar uma ideia de educação, uma integração de comunidades humanas numa forma de sociedade.

Os dois poemas são os dois testemunhos literários mais antigos da civilização grega e a sua autoria é entregue a Homero num período que se pode situar entre os séculos IX e VIII a.C., com o progressivo domínio da escrita e estabelecimento das polis. As epopeias homéricas retratam em seus cantos, os costumes, as formas de vida das populações micénicas. Nelas vemos as famílias aristocratas e a sua fundação através de um herói. A guerra dos Aqueus contra Tróia é só um exemplo desta construção de um poder que se fundasse num herói, ou tivesse alguma ligação ao divino. Importa reter que estes poemas homéricos formaram a paidéia, a língua, as artes e a construção religiosa sublimada nos deuses do Olimpo. A formação educativa e ética dos Gregos passou por estes textos, tal como a sua ideia de um cidadão que se desejava justo e sábio.
As epopeias homéricas representam momentos distintos. A Ilíada é do tempo da guerra, dos heróis e a Odisseia, dos homens que já têm uma cidade a que se ligam, que fazem viagens, navegam pelo Mediterrâneo, alargam uma civilização. Na Ilíada, a figura central é o guerreiro. A sociedade e o comportamento dos homens não está voltado para a vida pública. Concentra-se, antes na guerra e nas suas atitudes face a ela. A figura do herói aparece sempre inserida numa batalha e é ela que determina as suas virtudes, como coragem, lealdade, ou espírito de luta. No herói o mais importante são a luta e a vitória e é da sua valentia que nasce o respeito de todos. Parecendo uma narrativa distante, o que nos diz A Ilíada aos nossos valores contemporâneos?

A Ilíada traz-nos Heitor e Aquiles, traz-nos a dor de que se reveste o mundo, a capacidade para a entender, no sentido que ela é inseparável da existência humana. A Ilíada é um poema que revela "uma cólera", uma luta por uma conquista, mas diz-nos mais do que isso. Diz-nos que é preciso entender o sofrimento humano e que não é possível pensar a vida, vivê-la e estar à sombra desse sofrimento. Os valores que importam podem obrigar a uma luta, onde ele entre nós e temos de o descodificar, de o compreender, de o materializar em nós.

A Ilíada é no fundo uma forma diversa protagonizada por Aquiles e Heitor sobre como responder a essa condição de sofrimento que está presente no mundo humano. Neles vemos uma luta entre uma defesa de algo, de valores, embora a cólera de Heitor seja mais compreensiva, pois está a lutar pelos outros. Aquiles compreenderá que a dor fica, mesmo quando vinga Pátroclo matando Heitor e apenas na restituição aos deuses tem um apaziguamento dessa dor. 

Aquiles tem no seu encontro com Príamo um conforto por esse sofrimento que viveu. Aquiles compreendeu que a vida tem custos e que qualquer batalha, mesmo com os valores de um herói pode significar uma perda. A vida não pode fugir a isso, ou nós nela. Na batalha de Tróia, os Gregos receberam a lição maior de um herói, Heitor pela defesa de uma cidade, de um conjunto de pessoas, o valor do altruísmo. Aquiles compreendeu que na natureza humana a ausência de sofrimento não é uma garantia, independentemente do ethos de quem combate. É por esta envolvência que A Ilíada é um texto intemporal, uma construção de mundos através das palavras de Homero.

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