quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A palavra e o mundo - em nome da terra - (I)

E então disseste-me em alvoroço
- Vem ouvir!
E eu fui. Está aqui este louco a pregar, disseste ainda. Era uma voz rouca, inchada para baixo até às cavernas da profecia. "Porque vós estais todos enlameados na rotina animal e não quereis saber senão da gamela a horas, da canga a horas, do trabalho servil, e nem seque sabeis que existis.
- Que estação é esta? - perguntei. E tu disseste
- Não sei. Estava à procura da emissora e apareceu-me este pregador.
que existis. Todo o país está podre de estagnação, vós moveis um pé no lodaçal e ficais estoirados do esforço ao fim do dia. Mas nunca vos perguntais para quê, nunca vos perguntais o que isso quer dizer, nunca vos perguntais com que direito haveis de ser boi até ao fim da vida. Parai ó estúpidos, suspendei um momento esse vosso trabalho animal e perguntai-vos se é essa a vossa vontade, se num instante da vossa tarefa cavalar é isso com que sonhais para vosso prazer. Porque é que não fazeis aquilo que quereis? (...)

O que eu vos venho pregar é que vos perguntais para quê. O que tenho a dizer-vos é uma coisa elementar como a a água e o pão.   O que tenho a dizer-vos é se já vos perguntaste porque é que estais vivos, que é que fazeis da vida, porque é que amochais à vontade de outrem, porque é que alombais com um destino que não é o vosso. 

Tudo no universo tem um destino que é seu, vós nem sequer sabeis qual é o vosso porque antes de perguntardes já vos albardaram com um outro. O sol serve para aquecer, o mar para a navegação e o abastecimento piscícola, a pedra para fazerdes muros ou jogardes à pedrada - vós para que é que sois? Não vos trago mais uma doutrina política que já há de mais a apodrecer como a fruta excessiva, nem qualquer outra forma de serdes em rebanho nem que seja a de uma filarmónica. O que vos trago é apenas uma pergunta - porquê ou para quê. (...)

Estamos fora do tempo . Das idades. No susto de te desvaneceres. Tens os olhos cerrados mansos sobre ti para nada fugir de ti e eu ter-te toda no meu punho sangrento. E então soergo-me para que o meu imaginário se cumpra e se esgote. Perfeita inteira. Nenhuma linha se desvia pelo caminho da imperfeição. É a perfeição do embalo, a curva de um berço - e os seios. Fáceis leves como o teu corpo, mas não nascem dele. Seios de si mesmos, sem auréola, seios de puberdade. Tem já o desenho para a boca infantil de um dia, há-de haver essa boca quando entrares no tempo, na história corruptível da criação. Sem tempo agora, forma absoluta de uma geometria, que é a essência do incorruptível. Há um modo de o corpo ser, eles são esse modo. Integrados como a linha de um gesto. Ou uma flor. Ou uma pedra. Ou um cão. Integrados numa linha como um destino, que estupidez querer explicar o ser. Ou o azul. Ou uma cor que não existe e é a tua. Ou a harmonia do repouso da minha vida inteira aí.

Vergílio Ferreira. (2015). Em nome da Terra. Lisboa: Quetzal, páginas 155, 157 e 158

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