quarta-feira, 29 de junho de 2016

As cidades do espírito

Pois eu tenho visto muitas vezes a piedade se perder. Mas nós que governamos os homens, temos que aprender a sondar com seus corações afim de não ministrarmos nossa solicitude senão como objecto digno de estima. Mas essa piedade, eu a recuso nas feridas que se exibem que comovem o coração das mulheres, como recuso aos agonizantes, e aos mortos. E sei porquê. (…) 
Morada dos homens, quem te fundaria sobre o raciocínio? Quem seria capaz, segundo a lógica, de te edificar? Existes e não existes. És e não és. És feita de materiais díspares, mas é preciso te inventar para te descobrir. De mesmo modo que aquele que destruiu a sua casa com a pretensão de conhecê-la, não consegue mais que um monte de pedras, tijolos e telhas, não encontra nem sombra nem silêncio nem intimidade para o que elas serviam, e nem sabe que serviço esperar desse monte de tijolos, pedras e telhas, pois falta-lhe invenção que os domine, a alma e o coração do arquiteto. Pois falta à pedra a alma e o coração do homem. (…)
Assim sobre a virtude. Meus generais, em sólida estupidez, vieram falar comigo sobre a virtude: ‘Vocês aí, disseram-me, que os costumes se corrompem. E é porque o império se decompõe. É preciso endurecer as leis e inventar sanções mais cruéis. E cortar as cabeças daqueles que fracassarem.’ 
Eu, pensava, comigo:
‘Talvez seja preciso cortar cabeças. Mas a virtude é, de início, consequência. A corrupção dos homens é antes de tudo a corrupção do império que determina os homens. Pois se estivesse ele vivo e são, ele exaltaria a nobreza dos homens.  
Aquele que vem até mim com sua linguagem para apreender e exprimir o homem na lógica de sua exposição, parece-me semelhante à criança que se instala ao pé do Atlas com seu balde e uma pá, e formula o projeto de pegar a montanha e a transportar para outro lugar. O homem é o que é, não o que se exprime. Certamente que o objetivo de toda consciência é se exprimir o que é, mas a expressão é obra difícil, lenta e tortuosa, – e o erro está em crer que não é isso que não pode primeiramente enunciar. Pois enunciar e conceber têm o mesmo sentido. Mas é frágil a parte do homem, naquilo que eu até hoje aprendi a conceber. Mas, isso que eu concebi um dia não existia menos no dia anterior, e eu me engano se eu imagino que isso que eu não pude exprimir do homem não é digno de ser considerado.

Pois assim eu não exprimo a montanha, mas a significo [dou significado a ela]. Mas eu confundo significar e apreender. Eu significo a quem já conheça, mas aquele que a ignora, como saberei lhe transmitir esta montanha com suas ravinas de pedras rolantes e seus flancos de odores e seu topo escarpado rumo às estrelas? E eu sei quando esta não é uma fortaleza arrasada ou um barco sem direção do qual se solta a corda do anel de ferro para deslocar para onde quiser – mas existência maravilhosa com as leis de sua gravitação interna e seus silêncios mais majestosos que o silêncio da maquinaria das estrelas.
Fragments (I), (III) e (XVI) e (XXX)

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