E a beleza da pérola, que brilhava e cintilava à luz da pequena vela, perturbou o seu cérebro. Era tão bela, tão macia, desprendia-se dela uma música própria - a sua música de promessas e delícias, a sua garantia de futuro, de conforto, de segurança. O seu brilho quente prometia um remédio contra a doença e uma muralha contra os insultos. Fechava a porta à fome. Ao olhar para ela, os olhos de Kino adoçaram-se e o seu rosto descontraiu-se. Viu a pequena imagem da vela consagrada refletida na superfície lisa da pérola e voltou a escutar a música maravilhosa do mar, o tom da luz verde, difusa, do fundo do mar. Juana, espreitando o seu rosto, viu-o sorrir. E porque, de certa forma, eles eram um só com uma só vontade, sorriu ele.
E principiaram aquele dia com esperança.
A Pérola é um clássico da literatura. A reedição dos livros lidos dá-nos a possibilidade de voltar a ler o que já lemos e construir uma nova leitura. Nesta leitura a dimensão de parábola devolve-nos pormenores já esquecidos ou recortes de um drama humano que já tínhamos esquecido. A Pérola é uma pequena narrativa de um sonho, a luta persistente para mudar as linhas escritas da pobreza.
Nela vemos a luta antiga por esse ideal que sonha em ultrapassar a fome e a doença e dar a cada homem a possibilidade de construir o seu mundo, ainda que seja só um plano, um esboço de felicidade. O canto da terra, a natureza com as suas formas e cores, os seus silêncios e rumores e a linguagem do canto interior às coisas. A linguagem que pressente o bem e o mal, a esperança, a raiva e a ambição fazem parte desta adaptação de um conto popular mexicano, uma obra de grande significado.
A Pérola é quase uma parábola sobre a vida. Condensa o bem e o mal com que os humanos habitam a vida, entre a maior nobreza e a cobiça mais feroz. História de uma solidariedade, de uma família e desse canto mais íntimo ligado à terra e ao que ele transporta. Um exemplo de uma escrita em que Steinbeck alia a descrição rápida com o sentimento das personagens fazendo correr a narrativa com um brilho que nos faz ler com grande prazer. O escritor de Salinas é um dos grandes escritores do século XX pela capacidade de construir personagens que são memória e fruto desse património, a ruralidade, aqui num espaço localizado, numa cultura de pescadores.
A Pérola acaba por ser uma visão do que pode ser a vida, entre a maior rudeza, as necessidades mais essenciais e a conquista pelo privilégio do dinheiro e do poder pelos que já o têm. O fim do livro é uma pequena vitória para Kino e Juana, mas há nessa restituição ao mar algo de protecção à cobiça dos mais ricos, dos instalados no poder. E, no fim o valor da Natureza como consagração da essência que o homem tenta destruir. Fim que não deixa de ser desolador por um sonho que morre perante os contrafortes da ignorância, alimentada em universos dominados pela corrupção e pela insensibilidade.
A Pérola é assim um livro eterno de um escritor essencial, narrador da América, das condições de trabalho das pessoas, mas também um escritor do mundo, pela sua consciência universal. Uma escrita a envolver-nos com essa grandeza, que aqui Kino dá conta, "tinha perdido o seu mundo anterior e agora tinha de se agarrar a um mundo novo. Porque o seu sonho de futuro era real e não podia ser destruído" (p. 498). A grandeza de pensar um mundo e torná-lo real faz de A Pérola um livro notável e de Kino uma das grandes personagens da Literatura.
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