quinta-feira, 4 de junho de 2015

Memórias...


Havia um tempo em que, por estas colinas (sobretudo acompanhando o derradeiro fio de água do Tua, a caminho do  Douro), descia um comboio vagaroso e pobre, sujo, com as madeiras ressequidas a desfazerem-se, os varandis das carruagens enferrujados, os tectos corroídos pelo tempo. Chovia lá dentro. Os vidros, em muitas composições, tinham sido quebrados - ou, pura e simplesmente, quebraram-se com o tempo, o uso, a idade. Nos carris, o comboio chiava até encontrar as primeiras vinhas do Douro, relembrando ainda a última paisagem do planalto.

Quando o crepúsculo se despedia em Bragança, partia o derradeiro comboio que chegava ao Tua já noite alta, a tempo do transbordo para a linha do Douro, na direcção de Barca D'Alva. O percurso que desenhara no mapa, de Bragança a Macedo de Cavaleiros, Mirandela, Cachão e Tua, só era conhecido por esse traçado ronceiro, lento, demorado (...) entre uma paisagem de oliveiras, azinheiras e falésias caindo sobre o que restava do rio. (...) O caso da linha do Tua evoca tragédias recentes; mais do que «tragédias», no entanto, evoca o isolamento da região.

Nada disto interessa em Lisboa, tirando excepções muito localizadas. A indústria do asfalto que tomou conta do País, acompanhada pela indústria da camionagem, pela indústria das portagens e pela indústria do esquecimento, não tem a ver com as velhas linhas férreas que desenharam a geografia de um país onde os carris acompanhavam rios, fronteiras de província, planaltos áridos e solitários - e uma enumeração caótica de designações fora de moda. Ao longo dos anos, destruindo metódica e paulatinamente os comboios, desprezando as populações que os utilizavam e beneficiando os interesses da camionagem e dos combustíveis, o Estado preparou este cenário contra o qual há, hoje, pouco a fazer.

Uns, mais conformados, recordam; outros, menos conformados, resistem e combatem o quase inevitável fim destas linhas perdidas. Um resto de dignidade e de memória devia fazer-nos correr até onde o último comboio regional ainda corre - para o defender. O País - o Estado, os empresários, a indústria - dá o assunto como encerrado e abre auto-estradas, suja a paisagem, promove o grande progresso (...).
Por isso, defender o último comboio regional, seja onde for, é combater este país abjecto que destruiu a nossa paisagem, a nossa memória e a geografia do tempo.

                         Francisco José ViegasRevista Ler. Maio de 2010 

(Muitas vezes não compreendemos a estagnação económica, a imobilidade social ou a crise cultural de que o País vive. A luta contra a construção de uma barragem no rio Tua foi uma tarefa de cidadania pela defesa de um património humano e cultural. A importância das memórias de que Gonçalo Ribeiro Teles tem dado conta e da sua importância para a sustentabilidade das comunidades humanas fez-nos lembrar esta luta antiga e generosa. Defender um reino do maravilhosoOs gestos de indiferença para com as pessoas e a memória são demasiadas vezes, a arquitetura de uma desigualdade). 

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