A morte leva-o em três dias. Um cobertor de trevas vem sufocar-lhe a fímbria das pestanas caídas, o peito regougando num tablado a rebentar. Na linha dos cabelos, uma coroa de água de contínuo lhe encharca a testa. Vibra de súbito uma laranja, um cobalto, aos nervos transmitindo o choque da febre. No horizonte os castelos se acomodam, em sua frescura de florestas imensas. Andam, sente o homem, pelas pranchas de câmara, em seu rosto despejando um olhar abismado.
Porque morre? Ele lançara, no período de trinta anos e onze meses e treze dias, a órbita completa da longa experiência. Explorar as vias que rasgara, numa disciplina fatal de burocrata, seria contradizer-se, homem que só inverno discernia os alicerces da natureza. Também no amor, aquele olhar que jamais se aplacara na focagem de um objeto único, se alongava agora por promessas de perigo a que se julgava incapaz de resistir. Daí que o recebimento que concede à morte assuma o carácter de finitude, que assiste sempre a liquidação das contas de um ser com ele mesmo. (...)
E Amadeo, na incessante vertigem da produção, apenas se teria por predestinado enquanto libérrima criatura, cara a cara com o destino. Nesse vinte e sete de outubro de 1918, a vida que findara começava, como todas as que se extinguem, no reaver do palpitar definitivo de suas cores. Quanto às alamedas de Espinho, que no crepúsculo dos finais da estranhíssima guerra se tomavam despovoadas e varridas de areias, igualmente saberiam elas que a sua hora soara.
Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, página 106.
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