quarta-feira, 4 de maio de 2016

Prémio Pessoa 2015


Há uma procura de transcendência na obra de Rui Chafes a que a utilização do ferro como matéria-prima não é alheia. O ferro vem das profundezas da terra e é um dos elementos mais abundantes no universo; dentro do corpo humano é o responsável pelo transporte de oxigénio no sangue. É desta forma que Chafes trabalha este material: como algo que vem do âmago e ao mesmo tempo permite uma tal leveza e delicadeza que consegue conter o ar. 
Na sua exposição antológica no CAM da Fundação Calouste Gulbenkian, há peças de diferentes escalas, curvilíneas ou pontiagudas que saem das paredes para nos abraçar ou para nos cutucarem. Apetece sempre chegar mais perto e tocar. Não é comum que peças feitas de um material frio e rígido como o ferro suscitem a vontade do toque, mas estas dão. Talvez porque são moldadas com calor extremo e essa memória esteja impregnada nas obras. 

Porque Chafes molda o ferro como se fosse papel. Como um corpo que fosse moldado com tempo e carinho. São peças que dialogam com o nosso corpo. Sempre. Obrigam o corpo a relacionar-se com elas, a reagir, a afastar-se, rodear, espreitar. São elas próprias corpos. É a presença do divino. No início do percurso expositivo temos uma das obras mais surpreendentes: “Lições de Trevas“ é uma malha de 24 colunas padronizadas. Todas têm os mesmos elementos que se repetem em locais e de formas diferentes em cada coluna. O visitante passeia por entre as colunas como se estivesse a passear por entre soldados em formatura, pois há algo de profundamente humano na especificidade de cada uma delas. Para Oscar Niemeyer o importante não são as colunas mas o espaço entre elas. Embora estas colunas não sejam arquitectónicas mas sim puramente escultóricas, o espaço entre elas é fundamental, pois o visitante tem que se posicionar bem perto da coluna para poder percepcionar os seus detalhes, o que transforma este mesmo espaço em algo palpável e geométrico, um local de circulação e paragem. 

Logo a seguir temos uma sala com uma obra composta por um filme de Pedro Costa “Os Herdeiros” (2013) e “Vê Como Tremo” (2005) uma peça de Chafes que é uma peça de arquitectura efémera: uma estrutura metálica com subdivisões individuais contendo uma quadricula perfurada à altura dos olhos, por onde podemos ver o filme de Costa, como se estivéssemos num confessionário. Para uma experiência que é normalmente (ainda) colectiva, o cinema, Rui Chafes obriga-nos a uma fruição individual e intimista. Torna-nos uma espécie de voyeurs a tentar ver o Ventura. As duas obras complementam-se, são austeras e incomodativas. São notórias as afinidades que Chafes tem com Costa, assim como as que tem com Nozolino (também lá encontramos uma fotografia sua). São artistas do negro, mas quanto maior o negro maior também é o contraste e a luminosidade. É o escuro que nos desperta os medos irracionais, que estimula a imaginação. É de noite que dormimos e sonhamos ou temos pesadelos. De noite somos livres. Como considera Maria Filomena Molder, as esculturas de Chafes são guardiãs da noite. 

Para Molder as exposições de Rui Chafes ressuscitam a tragédia como lugar de representação e efectivamente ao entrarmos na sala aberta do CAM parece que estamos na presença de várias divas que se confrontam entre si com majestática dignidade. Cada uma delas é soberba e paira sobre nós de forma por vezes ameaçadora, por vezes condescendente numa “forma precisa, austera e cuidadosa de vertigem”. [1] 

Já numa anterior recensão tínhamos comentado o valor aurático das obras de Chafes. Essa qualidade que não é palpável e dificilmente é definível mas que é uma espécie de intangível. No CAM podemos ver que é uma qualidade intrínseca a todas as obras do artista. Mesmo as obras menos características dele como “Vertigem II” (1989-90), “Estrada de Sonho” (1997) ou “ Não Quando os Outros Olham” (1996), tem essa qualidade aurática que torna as suas esculturas intocáveis, mesmo que sejam uns sapatos expostos no chão. 
Uma obra que não sendo das mais características do artista é uma obra essencial nesta exposição, pois liga as obras de interior com as que estão expostas no jardim é “A História da Minha Alma” (2004). Consiste em duas filas paralelas de bancos em ferro, todos eles com um rasgão. Estes bancos percorrem a sala até uma janela e multiplicam-se no exterior como se a janela não tivesse vidro. Todas as obras de Rui Chafes parecem estar a deixar este mundo, numa atitude de abandono, de caminho em direcção ao divino. Esta peça é a mais óbvia emissária deste desabitar pois parece querer negar-nos a sua presença ao mesmo tempo que nos obriga a olhar para outro lado: o jardim. 
Inevitavelmente a obra constituída por “Burning in the Forbidden Sea” (2011) de Rui Chafes e “Filling Egg Shells” (2011) de Orla Barry, teria que estar presente numa antológica do artista. Embora seja uma colaboração, o trabalho sonoro de Barry contribui para tornar mais notório o carácter quase xamânico das esculturas de Chafes pois esta peça transporta-nos para um apogeu ritualístico primitivo. A obra de Rui Chafes está imbuída de um valor de sagrado. Um sagrado que não está ligado a uma religião mas sim a tudo o que é primitivo, ao tempo antes das religiões. A um tempo em que morrer fazia parte da vida, assim como as guerras e lutas. Um corpo de obra viril, mas que é ao mesmo tempo de uma delicadeza quase feminina. “Dei-lhe tempo de vestir a voz. E a ferida”. [2] Faz muitos anos que Rui Chafes tem uma voz concisa e profunda que cura as nossas feridas. 

Notas: 
(1) - Maria Filomena Modeler, Matérias sensíveis, Lisboa, rel+ogio DÁgua, 1999, p. 89.
(2)Lygia Fagundes Telles, As Meninas. Lisboa: Livros do Brasil, s.s., p. 120
 (In Arte Capital)

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