quarta-feira, 18 de maio de 2016

Amadeo - desenhar uma personalidade fascinante (II)

Na trama da relação que constituem a história, que o espírito dos seres homologa ou veta mas que jamais se livra em sua solidão sem paz, somos nós que nos buscamos ou é o encontro objectivo que se dá? De que adejar de antenas ou tremor de cílios se faz o fadário de cada um? 

Onde topámos com alguns dos que nos acompanham agora a peregrinação? Onde os reacharemos, quando se afastam cansados da partida? Essas naves sobrecarregadas de destinos diversos, agrupados em contingentes afins, que é no que consistem os bairros de Paris nos princípios do século, ora encalham nos bancos da morte ora zarpam rumo a um futuro de alguma eternidade. 

Poucas vezes se perderá Amadeo pelas conversas de rua. (...) A ganância da fama não lhe anulará a reflexão e, quando profetiza que haverão de disputar-lhe os trabalhos a preço de oiro, não o faz pela cegueira da ambição defraudada. É muito menos um vaticínio que o resultado de uma equação para que já dispunha dos termos necessários e suficientes. Pressente-se-lhe nas cartas um pensamento que preexiste a ação, o que é muito raro nos artistas. Na pintura, também, será a mesma natureza.

Digere quanto vê, rabisca ao canto do calendário ilações e memoranda, predispõe-se à aprendizagem sem mestres ungidos, vertiginosa ginástica de se ser e se perder. Não são assim os inspirados, arrebatados por uma águia que nem os arrasa nem os salva. Assim são, porém, os desbravadores de continentes, alguns atletas sem ideologia política. muitos artesãos que gravaram siglas na cantaria das catedrais. Ele não perpassa, fica. E na determinação de ficar palpita uma preocupação de burguês abastado, que ordena, a cinquenta anos de vista, a plantação de um carvalhal ou a vedação de uma jeira, para quando  for aberta a auto-estrada.

Ainda nisso radicará a monomania da poupança, sintetizada nos pincéis cuidadosamente perfilados em seu canjirão de Bisalhães, na mina de lápis que se aguça nem mais nem menos que o preciso, nos restos virgens de Whatman que para as contas se aproveitam ou para o rascunho de um bilhete.              
        
Mário Cláudio. (2016). "Amadeo", in Triologia da Mão. Lisboa: D. Quixote, págs. 48 - 50.
Imagens: Copyright - Biblioteca de arte - Fundação Calouste Gulbenkian

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