segunda-feira, 23 de maio de 2016

Bioética - os seus campos de decisão


A civilização moderna encontra-se numa posição difícil, porque embora edificada para nós, não está ajustada à nossa medida. A nossa ideia de homem ainda não encontrou o seu lugar estranho e complexo, ela oscila entre a visão filosófica, que o erige no único sujeito num mundo de objetos, e a visão científica que tende a ignorar o espírito humano. Ainda não ajustámos a nossa visão do Homem ao Homem e do mundo ao mundo.

Recordamos aqui a célebre alegoria da caverna. As sombras projetadas no fundo da caverna são o mundo natural, aquele que percecionamos. Esses prisioneiros agrilhoados no seu lugar e aos quais uma gargantilha impede de voltar a cabeça “é connosco que se assemelham”. A fascinação que o jogo irrisório das silhuetas imprecisas exerce sobre esses infelizes revela o nosso estado, sentimo-nos perdidos: o meio elaborado pelo Homem não se ajusta à nossa estatura, nem à nossa natureza. Assim poder-nos-emos questionar se o Prometeu revestido pelo poder, desagrilhoado, na opinião de alguns, ou seja com o poder de intervir, de praticar o possível e mesmo o impossível, não o vai voltar a agrilhoar, se ele não olhar ao conveniente.

Vivemos num presente esmagado pelo peso do futuro. A nossa relação com o tempo é, antes do mais, uma relação extremamente dura e violenta com o futuro. Fala-se do futuro mas, paradoxalmente, nunca fomos tão responsabilizados pelo futuro que devemos deixar às gerações seguintes. Deveríamos, portanto, mudar radicalmente de atitude e romper com todo o tipo de utopismo. Quer o aceitemos ou não, estamos investidos de uma responsabilidade desconhecida, a de deixarmos às gerações futuras uma terra habitável e um mundo sustentável. Sem isto, os nossos descendentes não serão capazes de progredir, nem exercer as suas responsabilidades.

Necessitamos de uma reabilitação do ethos, dos valores morais que fundamentam as atitudes humanas; precisamos da ética, de teorias filosóficas sobre os valores e normas que devem nortear as nossas decisões e comportamentos. A atual crise deve ser entendida como uma oportunidade; importa encontrar uma resposta para os desafios do presente. Se o futuro não está escrito, é múltiplo. Assim todas as possibilidades, mesmo o impossível, são imagináveis. A questão da escolha é portanto essencial.

A Bioética, ética aplicada às ciências da vida, surge na interseção de uma crise de valores e de normas coletivas com o desenvolvimento do individualismo das pessoas e do pluralismo das sociedades. Estimula o debate público sobre as escolhas para o nosso futuro, promovendo uma alteração de consciência, incentivando a participação informada e responsável dos cidadãos. Como ciência transdisciplinar, começa a ser reconhecida como a componente indispensável da formação do cidadão empenhado na vida coletiva, tornando-se numa ética do cidadão, numa ética cívica, enquanto reflexão sobre a ação que se desencadeia, desenrola e se repercute na comunidade global. Tal como defende Victoria Camps (1998), a participação cívica deve ser encarada como a estrutura moral da democracia, onde a ética contribui de um modo determinante para a formação de uma consciência de deveres inerente à formação de direitos, o que faz com que funcione como um elemento de ponderação na educação para a cidadania.

É justamente pela sua especificidade que a Bioética, quando considerada sob o ponto de vista da educação para a deliberação, constitui uma oportunidade excecional para o desenvolvimento de competências reflexivas, críticas, de base plural e democrática. Ao mesmo tempo, permite desenvolver a consciência da responsabilidade e da necessidade da deliberação para a decisão, reconhecendo a posição do outro sem (pré)-conceitos, pressuposto indispensável para um qualquer debate ético.

Ana Sofia Carvalho, "A Bioética e a responsabilidade de deliberar para decidir", Observatório da Cultura, nº 21, in http://www.snpcultura.org/

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