sexta-feira, 17 de março de 2017

A arte do instante (V)

O mundo do silêncio que se desenha num tempo suspenso, como representação do instante, a individualidade de gestos minuciosos, uma arte da contemplação.
Tudo isso foi a pintura holandesa do século XVII, numa alquimia nascida do quadro e construída na representação de uma luz de natureza encantatória. Pintura também de universos femininos, num registo de memória.

A pintura holandesa do século XVII se fosse apenas um registo de memórias já era uma caso assinalável, pois reúne uma alegria pela vida que torna a pintura registada noutros impérios, com outra influência religiosa, uma representação cultural de transgressão. Os quadros de Vermeer, de Emanuel De Witte, ou de Pieter de Hoch conduzem-nos a uma característica essencial da pintura holandesa do século XVII, uma representação do feminino.
As cenas representadas, o seu fulgor em transfigurar o silêncio que acompanha pessoas e coisas centra-se no feminino. Existem poucos quadros em Vermeer em que se dispense o universo feminino e os espaços dessa intimidade, como uma admirável nostalgia do instante. Nesta representação cantrada no feminino, ou nos seus espaços, ou objetos, os homens têm um papel secundário. Estes apresentam-se como convidados de uma história, ou tão só elementos para criar um cenário, para compor uma narrativa do instante. O elemento feminino está definido no centro do quadro e toda a acção carece da sua presença.
A centralidade da presença feminina nos quadros da pintura holandesa do século XVII revela-nos a importância das descrições e dos objectos representados.  A leitura de cartas é uma das cenas mais comuns representadas. Não se trata de um efeito decorativo, mas da afirmação de um conteúdo com relação ao contexto cultural e social. A carta era um instrumento de relação social, limitada apenas pelas redes de comunicação. O império comercial holandês estendeu-se aos confins da Ásia e estima-se que entre 1595 e 1795 saíram um milhão de pessoas dos chamados Países Baixos. As cartas eram assim muito frequentes neste universo humano.

É desse mundo exterior que virão os sinais da aventura marítima, os quadros, os mapas, os instrumentos musicais, os vasos chineses, tudo isso vem de um exterior que irá alimentar os espaços interiores, na construção de um gosto e de uma expressão estética. Os quadros da pintura holandesa do século XVII são a representação de uma alegria quotidiana, a materialização poética de espaços femininos, uma espécie de "superfície do qual os homens traçaram rotas, como linhas sobre o globo" (1). 
A harmonia dos espaços habitados, construídos por uma dedicação feminina e um conforto possível por uma burguesia comercial são o fundo desta pintura. E são também um sinal da matriz pragmática e transcendente do calvinismo, como influenciadora de um fazer humano mais aberto, espelho de um refinamento civilizacional.

(1) -  Jean-Marie Tasset, 9 journées de la vie d' un Peintre. Le Figaro: Paris: Société du Figaro. 2017; Imagem - Vermeer, The Lacemaker, 1669 - 1670, Museu do Louvre, Paris.

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