O
mundo do silêncio que se desenha num tempo suspenso, como representação
do instante, a individualidade de gestos minuciosos, uma arte da
contemplação.
Tudo
isso foi a pintura holandesa do século XVII, numa alquimia nascida do
quadro e construída na representação de uma luz de natureza
encantatória. Pintura também de universos femininos, num registo de
memória.
A
pintura holandesa do século XVII se fosse apenas um registo de memórias
já era uma caso assinalável, pois reúne uma alegria pela vida que torna
a pintura registada noutros impérios, com outra influência religiosa,
uma representação cultural de transgressão. Os
quadros de Vermeer, de Emanuel De Witte, ou de Pieter de Hoch
conduzem-nos a uma característica essencial da pintura holandesa do
século XVII, uma representação do feminino.
As
cenas representadas, o seu fulgor em transfigurar o silêncio que
acompanha pessoas e coisas centra-se no feminino. Existem poucos quadros
em Vermeer em que se dispense o universo feminino e os espaços dessa
intimidade, como uma admirável nostalgia do instante. Nesta
representação cantrada no feminino, ou nos seus espaços, ou objetos, os
homens têm um papel secundário. Estes apresentam-se como convidados de
uma história, ou tão só elementos para criar um cenário, para compor uma
narrativa do instante. O elemento feminino está definido no centro do
quadro e toda a acção carece da sua presença.
A
centralidade da presença feminina nos quadros da pintura holandesa do
século XVII revela-nos a importância das descrições e dos objectos
representados. A leitura de cartas é uma das cenas mais comuns
representadas. Não se trata de um efeito decorativo, mas da afirmação de
um conteúdo com relação ao contexto cultural e social. A carta era um
instrumento de relação social, limitada apenas pelas redes de
comunicação. O império comercial holandês estendeu-se aos confins da
Ásia e estima-se que entre 1595 e 1795 saíram um milhão de pessoas dos
chamados Países Baixos. As cartas eram assim muito frequentes neste
universo humano.
É
desse mundo exterior que virão os sinais da aventura marítima, os
quadros, os mapas, os instrumentos musicais, os vasos chineses, tudo
isso vem de um exterior que irá alimentar os espaços interiores, na
construção de um gosto e de uma expressão estética. Os quadros da
pintura holandesa do século XVII são a representação de uma alegria
quotidiana, a materialização poética de espaços femininos, uma espécie
de "superfície do qual os homens traçaram rotas, como linhas sobre o
globo" (1).
A
harmonia dos espaços habitados, construídos por uma dedicação feminina e
um conforto possível por uma burguesia comercial são o fundo desta
pintura. E são também um sinal da matriz pragmática e transcendente do
calvinismo, como influenciadora de um fazer humano mais aberto, espelho
de um refinamento civilizacional.
(1) - Jean-Marie Tasset, 9 journées de la vie d' un Peintre. Le Figaro: Paris: Société du Figaro. 2017; Imagem - Vermeer, The Lacemaker, 1669 - 1670, Museu do Louvre, Paris.
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