segunda-feira, 13 de março de 2017

A palavra e o mundo - A Desumanização (I)

A humanidade começa nos que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser- se pessoa implica a tua mãe, as nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta. Perece como uma coisa qualquer.
Pintávamos os móveis de flores escuras. Demorávamos muito e a casa cheirava a tintas más, baratas, que demoravam a secar. O meu pai impedia-me de chorar pelo ofício da racionalidade.
Aprender a solidão não é senão capacitarmo-nos do que representamos entre todos. Talvez não representemos nada, o que me parece impossível. Qualquer rasto que deixemos no ermitério é uma conversa com os homens que, cinco minutos ou cinco mil anos depois, nos descubram a presença. Dificilmente se concebe um homem não motivado para deixar rasto e, desse modo, conversar. E se houver um eremita assim, casmurro, seguro que terá pelo chão e pelo céu uma ideia de companhia, espiritualizando cada elemento como quem procura portas para chegar à conversa com deus. Estamos sempre à conversa com deus. A solidão não existe. É uma ficção das nossas cabeças.
Os homens só percebem que há alguém na água, na pedra, no vento, no fogo. Há alguém na terra.
De qualquer maneira, expliquei ao meu pai, a mãe odeia-me. Isso faz-me chorar, deixa-me triste e ofende-me.
Ele insistia explicando-me que as crianças eram modos de espera. Queria dizer que as crianças não tinham verdades, apenas pistas. O seu mundo fazia-se de aparências e tendências, nada se definia. Ser-se criança era esperar. Também significava que queria de mim admirável força sem outro sustento que não o da idade. Deixava-me à sorte, cheia de palavras estranhas cujo significado me custava encontrar.
Olhei para os móveis velhos e achei que já eram tristes antes de os escurecermos. Eram os móveis do nosso eremitério.
Que maravilha, as fundas dos vulcões que respiram e aguardam. Que maravilha, a espessura das montanhas que deitam pé ao debaixo das águas e aguardam. Diziam os velhos carregados de ideias inúteis. Os profundos velhos. Gosto da coragem, aumentados da desconfiança. Palavrinhas acerca de como devia ser cada gesto, cada sentimento, cada sonho de futuro. Como se o futuro estivesse preparado para ser igual ao passado, aos dias que gastaram. Como se eu ainda fosse a tempo de lhes ser igual. Uma velha metida para dentro a conspirar inconfessavelmente contra tudo e contra todos.
Quem tem filhos, precisa do futuro. Ouvi-os falar assim.
Punham-se à espreita das águas a perceber se havia movimentos suspeitos. Quase todos queriam ver monstros. Ninguém se convencia de que os mares eram só para animais de clara ciência. Alguns juravam ter visto cabeças levantadas, feitas de dez olhos e bocas de mil dentes. Monstros oceânicos. Viam o oceano como sangue de cristal. Balanceava diante de nós sinuoso, muito belo, mas carregava-se de perigos e sonhava com afogar-nos a todos. O oceano desceu das veias puras de deus. Dizia um velho. Nas veias puras de deus vivem parasitas que são monstros.

Valter Hugo Mãe. (2016). A Dezumanização. Porto : Porto Editora, páginas 29-31.

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