A humanidade começa nos
que te rodeiam, e não exatamente em ti. Ser- se pessoa implica a tua mãe, as
nossas pessoas, um desconhecido ou a sua expectativa. Sem ninguém no presente
nem no futuro, o indivíduo pensa tão sem razão quanto pensam os peixes. Dura
pelo engenho que tiver e perece como um atributo indiferenciado do planeta.
Perece como uma coisa qualquer.
Pintávamos os móveis de
flores escuras. Demorávamos muito e a casa cheirava a tintas más, baratas, que
demoravam a secar. O meu pai impedia-me de chorar pelo ofício da racionalidade.
Aprender a solidão não
é senão capacitarmo-nos do que representamos entre todos. Talvez não
representemos nada, o que me parece impossível. Qualquer rasto que deixemos no
ermitério é uma conversa com os homens que, cinco minutos ou cinco mil anos
depois, nos descubram a presença. Dificilmente se concebe um homem não motivado
para deixar rasto e, desse modo, conversar. E se houver um eremita assim,
casmurro, seguro que terá pelo chão e pelo céu uma ideia de companhia,
espiritualizando cada elemento como quem procura portas para chegar à conversa
com deus. Estamos sempre à conversa com deus. A solidão não existe. É uma
ficção das nossas cabeças.
Os homens só percebem
que há alguém na água, na pedra, no vento, no fogo. Há alguém na terra.
De qualquer maneira,
expliquei ao meu pai, a mãe odeia-me. Isso faz-me chorar, deixa-me triste e
ofende-me.
Ele insistia
explicando-me que as crianças eram modos de espera. Queria dizer que as
crianças não tinham verdades, apenas pistas. O seu mundo fazia-se de aparências
e tendências, nada se definia. Ser-se criança era esperar. Também significava que
queria de mim admirável força sem outro sustento que não o da idade. Deixava-me
à sorte, cheia de palavras estranhas cujo significado me custava encontrar.
Olhei para os móveis
velhos e achei que já eram tristes antes de os escurecermos. Eram os móveis do
nosso eremitério.
Que maravilha, as
fundas dos vulcões que respiram e aguardam. Que maravilha, a espessura das
montanhas que deitam pé ao debaixo das águas e aguardam. Diziam os velhos
carregados de ideias inúteis. Os profundos velhos. Gosto da coragem, aumentados
da desconfiança. Palavrinhas acerca de como devia ser cada gesto, cada
sentimento, cada sonho de futuro. Como se o futuro estivesse preparado para ser
igual ao passado, aos dias que gastaram. Como se eu ainda fosse a tempo de lhes
ser igual. Uma velha metida para dentro a conspirar inconfessavelmente contra
tudo e contra todos.
Quem tem filhos,
precisa do futuro. Ouvi-os falar assim.
Punham-se à espreita
das águas a perceber se havia movimentos suspeitos. Quase todos queriam ver
monstros. Ninguém se convencia de que os mares eram só para animais de clara
ciência. Alguns juravam ter visto cabeças levantadas, feitas de dez olhos e
bocas de mil dentes. Monstros oceânicos. Viam o oceano como sangue de cristal.
Balanceava diante de nós sinuoso, muito belo, mas carregava-se de perigos e
sonhava com afogar-nos a todos. O oceano desceu das veias puras de deus. Dizia
um velho. Nas veias puras de deus vivem parasitas que são monstros.
Valter Hugo Mãe.
(2016). A Dezumanização. Porto : Porto Editora, páginas 29-31.
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