Aqui acabam as palavras, aqui acaba o mundo que
conheço; aqui neste tremendo isolamento onde a vida artificial está reduzida ao
mínimo só as coisas eternas perduram. (...) O Corvo não tem peso no mundo, mas
nunca senti como aqui a realidade e o peso do Tempo. Sob o seu domínio
todos caminham, repetindo os mesmos gestos e as mesmas palavras, e arrastando o
mesmo fardo sem levantarem a cabeça nem desatarem aos gritos.
Estas figuras despidas e trágicas são tremendas como problemas insolúveis. Erguem-se diante de mim, e arredo tudo, esqueço tudo para os interrogar. Não que eles me saibam responder - eu é que hei-de responder a mim próprio, porque foi isto que me trouxe ao Corvo (...)
Um clima ríspido. De Inverno o salitre entranha-se nos homens e nas pedras. Quase sempre chove. (...) O céu amanhece sempre nublado; se clareia até às dez horas temos sol, senão conserva-se todo o dia forrado de névoas. Ventanias ásperas varrem o morro. O céu muda de aspecto todos os dias e quase a todas as horas. À tarde aquela fumarada espessa despega-se lá de cima e arrasta-se sobre as pedras. Para além o céu azul está quase límpido, mas a nuvem, que se não sabe donde vem, toma todas as formas, e, sempre da mesma cor, fixa-se e não larga os montes do Corvo.
às vezes pára, volta atrás, introduz-se nas gargantas e nos vales, dotada duma vida estranha. Sempre nuvens, sempre vento e em cada ano dois meses de Verão. às vezes um ciclone. Juntem a isto o ruído eterno do mar que ecoa nos paredões e nas almas. O sentimento é de tragédia. Tudo se curva às leis essenciais da natureza neste rochedo vulcânico, erguido no meio do mar amargo, e com espigões de granito até profundidades desconhecidas; neste grande desterro, domínio do Tempo, onde a paisagem não sorri nem as raparigas cantam. (...)
As da necessidade impõem-se no Corvo como em nenhuma outra
parte que conheço. É a solidão que as impõe, é a solidão que lhes ensina a ordem, a disciplina ou os sentimentos cristãos? Nós, se não conseguimos suprimir o tempo, arredamo-lo. Eles não. Também só aqui entrou em mim como uma realidade o que esta palavra quer dizer: o pão. (...)
Aqui não há desgraça - aqui não há fome - aqui não há injustiça. E, no entanto, eu não suporto a ideia nde ficar no Corvo, que tem alguma coisa de monástico, de conventoi erguido no meio do mar. O bem talvez - a vida mais pura talvez - menos sofrimento talvez - mas também eu quero ser deus, embora me dilacere e sofra!...
E este debate, que me não larga, enche-me de tristeza.
A pedra é negra, a vegetação utilitária, a vida, grosseira mas com uma religiosidade como nunca vi em outra parte. Estes seres isolados no mundo - unem-se. Num Inverno em que até os aguarelhos, que vivem no mar, morrem se não emigram a tempo, eles encontram refúgio no sentimento cristão de irmandade, que lhes faz suportar a repetição dos mesmos gestos e dos mesmos actos grosseiros durante toda a existência e o abandono a que estão votados. Melhor: amam a sua ilha. Quando as raparigas embarcam para a América até das pedras se despedem abraçando-as. O Corvo é um mundo.
Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 36, 49, 50 e 51; Imagens - Copyright - Oliver Schaef
Um clima ríspido. De Inverno o salitre entranha-se nos homens e nas pedras. Quase sempre chove. (...) O céu amanhece sempre nublado; se clareia até às dez horas temos sol, senão conserva-se todo o dia forrado de névoas. Ventanias ásperas varrem o morro. O céu muda de aspecto todos os dias e quase a todas as horas. À tarde aquela fumarada espessa despega-se lá de cima e arrasta-se sobre as pedras. Para além o céu azul está quase límpido, mas a nuvem, que se não sabe donde vem, toma todas as formas, e, sempre da mesma cor, fixa-se e não larga os montes do Corvo.
às vezes pára, volta atrás, introduz-se nas gargantas e nos vales, dotada duma vida estranha. Sempre nuvens, sempre vento e em cada ano dois meses de Verão. às vezes um ciclone. Juntem a isto o ruído eterno do mar que ecoa nos paredões e nas almas. O sentimento é de tragédia. Tudo se curva às leis essenciais da natureza neste rochedo vulcânico, erguido no meio do mar amargo, e com espigões de granito até profundidades desconhecidas; neste grande desterro, domínio do Tempo, onde a paisagem não sorri nem as raparigas cantam. (...)
As da necessidade impõem-se no Corvo como em nenhuma outra
parte que conheço. É a solidão que as impõe, é a solidão que lhes ensina a ordem, a disciplina ou os sentimentos cristãos? Nós, se não conseguimos suprimir o tempo, arredamo-lo. Eles não. Também só aqui entrou em mim como uma realidade o que esta palavra quer dizer: o pão. (...)
Aqui não há desgraça - aqui não há fome - aqui não há injustiça. E, no entanto, eu não suporto a ideia nde ficar no Corvo, que tem alguma coisa de monástico, de conventoi erguido no meio do mar. O bem talvez - a vida mais pura talvez - menos sofrimento talvez - mas também eu quero ser deus, embora me dilacere e sofra!...
E este debate, que me não larga, enche-me de tristeza.
A pedra é negra, a vegetação utilitária, a vida, grosseira mas com uma religiosidade como nunca vi em outra parte. Estes seres isolados no mundo - unem-se. Num Inverno em que até os aguarelhos, que vivem no mar, morrem se não emigram a tempo, eles encontram refúgio no sentimento cristão de irmandade, que lhes faz suportar a repetição dos mesmos gestos e dos mesmos actos grosseiros durante toda a existência e o abandono a que estão votados. Melhor: amam a sua ilha. Quando as raparigas embarcam para a América até das pedras se despedem abraçando-as. O Corvo é um mundo.
Raul Brandão. (2011). As ilhas desconhecidas. Lisboa: Quetzal, páginas 36, 49, 50 e 51; Imagens - Copyright - Oliver Schaef
Sem comentários:
Enviar um comentário