quarta-feira, 15 de março de 2017

A arte do instante (III)

O enigma de um olhar, o tempo suspenso e um instante em representação, algumas das vertentes com que a História de Arte costuma designar o século de ouro da pintura holandesa. Dessa iconografia do quotidiano, de um amor vivo nas tarefas diárias, de um espaço de intimidade, chegamos também às figuras solitárias dessa pintura.

Nesta pintura as figuras, as pessoas estão sós e definem-se pelas suas tarefas, pelas suas atitudes nos espaços e apenas por si. Não existe necessidade de cada uma das figuras se preencher num outro. Nesta pintura cada figura constrói-se inteiramente pelo que realiza sozinha, com a sua postura física. Nela vemos as emoções desvendadas em pequenos gestos, os cabelos em caracóis pendentes sobre o peito, as linhas do vestuário envolvendo corpos, definindo atmosferas, ou a guitarra que em precisos movimentos parece evidenciar um som. Como nos surpreendemos, com a elegância das formas de um corpo que se expande num espelho, ou os gestos de uma pequena boca semi-aberta, ou um sorriso que se estende num cumprimento.

A pintura holandesa do século XVII é feita da apresentação de figuras, de fisionomias que adivinham formas de enredos familiares e sociais. A carta que se escreve, o olhar fixo num sentimento, um pequeno drama que se apresenta, como uma saudade, ou uma inquietação. E depois, sobretudo com Vermeer é a luz que nos chama, que nos encanta, como forma de comunicação  a uma representação.

Vermeer pintou um conjunto de quadros onde notamos nenhum artificialismo da luz. Esta apresenta-se precisa e muito idêntica como a vemos na natureza, tal "como um físico escrupuloso a poderia desejar" (1). Há uma apresentação de raios de luz que se expandem de uma ponta à outra do quadro, pois a luz parece emergir da própria pintura. O espetador surge neste olhar como uma testemunha de um momento, de uma  vontade e de um tempo quotidiano.

(1) Theóphile Thoré Alias W. Bürger, "Van der Meer Delft", in Gazette des Beaux Artes, XXI, 1866.
imagem - Detalhe de A Carta, 1670, National Gallery of Ireland, Dublin.

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