segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Eugénio - a biografia de um amigo

(...)
"Eugénio de Andrade, vulcões de camaradagem exigente e limpa, ilhas fraternas de rigorosa ternura, abrigos de pedra suave onde encostar a inquietação da febre, pessoas que nos reconciliam com a noite mais escura da alma de que Scott escrevia, por dela nos trazerem vestígios da manhã. E é de Eugénio de Andrade que falo hoje, perpétua varanda de basalto em chamas de frente para o mar.

Chamam-lhe o amigo mais íntimo do sol: de acordo, se o sol for obstinado e severo. Chamam-lhe poeta: de acordo, se as palavras nos trazem notícia da veemência do sangue. Chamam-lhe difícil: de acordo, se notarem a bondade de menino na pomba do sorriso que de tempos a tempos acende os passos seus e os nossos e nos mostra a única vereda que caminha a direito, nas macieiras fora, na direção do rio. 

Não conheço ninguém com gestos tão longos e com uma tão aguda inteligência de alma. Onde poisa a atenção do ouvido tudo se torna búzio. Onde descansa os dedos tudo se torna gato comedido e atento. Onde os olhos lhe nascem aprendemos com ele o intrasigente júbilo do mundo. E no entanto que geografia de dor no país do seu rosto, que discrição no sofrimento, que impediosa dignidade medida em cada sílaba. A total ausência de vaidade do seu orgulho foi o que, ao encontrá-lo pela primeira vez, mais profundamente me comoveu. (...)

Ainda que em guerra Eugénio reconcilia-nos connosco ao deixar entrever os degraus que nos falta subir para estarmos lá em baixo, no lugar que é o nosso, manchados da comovida urina e dos líquidos obscuros que nos protegem ao nascer e nos esperam, na sombra da morte, a fim de nos ajudarem a partir, pobres criaturas mudas vestidas de ranho e de poeira celeste. Para além da amizade que nele é dura e nobre, isto lhe devo também: o retrato da minha condição e a certeza de que algo para além de mim continuará nos seus versos, seja pássaro, nuvem ou laranja madura.

Escrevi um dia que quando o coração se fecha faz mais barulho que uma porta. Não imagina como lhe agradeço, Eugénio, que o seu se mantenha calado num vigilante desvelo, convidando-me a entrar onde uma máscara de bronze nos aguarda para ficar connosco, naquela sala aberta rumo às palmeiras da voz." (1)


(1) António Lobo Antunes, "Bom dia Eugénio" , in 2º Livro de Crónicas

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