quarta-feira, 14 de junho de 2017

A palavra e o mundo - estender os sonhos (II)

As longas horas, uma imagem quase imóvel no ecrã.
"O que importa conservar é a diminuição da luz, é o movimento da câmara que corta a luz da janela, no início do plano vemos a janela inteira (...) as mãos que tocam na película. O pequeno candeeiros. Um corte. A penumbra. As mãos quase cegas sobre as imagens. Tactear. (...)

"Há um momento em que a luz lhe salta dos olhos, é muito difícil, mas se pudéssemos conservar essa luz - "
Fique com essa luz, mas não lhe dê nenhuma expressão, a ele. O Leonhardt é uma estátua, um mineral, e as árvores ao fundo são tão importantes como ele, feitas da mesma matéria, e a janela, o trinco da janela, aquela rachada na moldura da janela, não perca isso, é imp0rtante. É importante a mão - "
"Eu sei!"
"É importante a mão na janela, porque o Leonhardt não está a agarrar nada, ele só toca na janela para saber onde ela está, não a vê - mas, bom... Precisa de tocar na madeira para saber. (...)

"Mostrar as coisas. Construir por cima das coisas. Os anjos. Já falámos disso. Tantos anjos nas igrejas, no filme. Um exército de anjos barrocos esculpidos. Não é para comover. Mas filmamos os anjos e eles significam o poder da igreja. O Brecht dizia: o preço das coisas. Dizer quanto custa. É igual. O valor de uso, o valor de troca. Dizer isso num filme. Faz um bocado de mado, não?"

Jogo de luzes. A luz na janela, através das árvores.A tira do caixilho de madeira deita uma vaga sombra sobre Leonhardt. Mas a luz artificial, dentro de casa, ilumina o actor, faz reluzir os cachos da peruca barroca, E Leonhardt faz sombra sobre a moldura da janela. A câmara, num ligeiro contrapicado, mostra breves sombras na cara: o queixo, a testa, e junto dos olhos.
O prelúdio coral.

Como se filma a cegueira? Quem está cego? Quem está mergulhado no mundo e não vê o mundo, não vê o que tem em frente aos olhos e toca uma janela, caixilho, madeira, para saber que há ali realidade, o vidro, as árvores? O tempo destas mãos, destes dedos, agora sem teclado: dedos para sentir o mundo, em vez dos olhos cegos. Dedos para ver. Para enrolar a película, cortar, dedos para colar. Paciência.
O charuto em brasas. Straub continua:
"Resistir."
Continua.

"Resistir é regressar aos documentos, fazer os microfilmes das partituras, das cartas, das dedicatórias, tirar o pó aos arquivos e perceber que esses documentos ainda estão no nosso futuro, ainda nos esperam, que a História não está terminada. Nem sequer o século XVII, o século XVIII, nada terminou, ainda estão a acontecer, ainda - de cada vez que você fotografa uma partitura, e depois o Leonhardt toca um cravo branco, e a voz da Anna Magdalena lê os textos - então, nós percebemos que a vida de Bach ainda está por decidir." 
Paciência, paciência

"E também é isso que eles não nos podem perdoar. Na Europa, na Alemanha. O que aconteceu aconteceu, dizem eles; uma pedra em cima, um túmulo. Para o bem e para o mal, esquecer depressa. Fazer o monumento, esconder as ruínas. Mas resistir é negociar outra vez, voltar a fazer contas: quanto custou. Quanto doeu. Pegar nas peças e voltar a construir a Alemanha. mas construir de outra maneira, com fidelidade. Imperdoável! Resistência e fidelidade. A resistência é a fidelidade..."

Pedro Eiras. (2014). "Jean-Marie Straub e Danièle Huillet", in Bach. Porto: Assírio& Alvim

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