Vi que
chovia.
Desconheço os meandros dessa poesia que faz uma chuva cair devagar. Nunca indaguei ninguém sobre a não-densidade de tal fenómeno. Gostaria mais de ouvir a resposta de uma criança do que a de um cientista. Só sei que gosto.
Madrugada. Primeiro é a voz.
Depois é a mão sozinha que me prende o olhar. Desacelero o passo. Sei que a mão são três: uma de menina e duas muito antigas. Vejo o que daqui posso ver.
Uma mão. mais duas. Uma varanda. A noite densa sob o não-luar. e a voz da criança que ainda não sei bem o que diz.
Quantas imagens me traz esta chuva repentinamente lenta! Sei que existe chuvisco. Pingo. Molha-parvos. Chuva torrencial. Cacimbo. Geada. Mas isto é chuva lenta. Talvez a minha preferida. Talvez. De madrugada, certamente a minha preferida.
Arrasto o passo quanto posso. Evito olhar - mas desconsigo. O velho não me viu. Nem verá.
A menina sim. Quieta. Tem sono? o que faz semidesperta, atravessando esta húmida noite como um viajante acostumado? Como sabe que atraso o passo para saber dela, das mãos, do que a sua voz imprime no corpo da nossa madrugada?
Agora sei o que diz. Sorrio. Páro.
Tenho um misto de vergonha e timidez por não lhe saber dar uma resposta. Poderia fazê-lo, sem dúvida. Mas como negar a uma criança o meu mais sincero silêncio, entre o antónito e o embaraçado, que a sua súplica me deixa?
O que me faz voltar a caminhar é o abandono: a chuva abandonou a sua lentidão. A chuva - agora - quer chover. Nem eu, nem a criança, nem o velho, ninguém pode abrandar a chuva. Ela quer chover, ela vai chover: a chuva.
Fazia madrugada em nós. Naquela varanda. Naquela voz. E na gaiola arejada.
A menina repetiu:
- E o meu passarinho? Aonde foi o meu passarinho...?
Ondjaki. (2014). "Dar es Salaam", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.
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