Estou sentada em cima da minha mochila, no centro de um vagão cheio, e preciso de te ajudar, meu Deus. (...)
Estou sentada em cima da minha mochila, o vagão trepida, as crianças dormem e os velhos velam, e eu vou no transporte e penso que tenho de te ajudar, meu Deus. Tu não tens forças para nos socorrer, por isso eu preciso de vir em teu socorro. Porque tu estás reduzido a tão pouco, e não podes valer a todos, então eu preciso de te dar as minhas forças. Precisas de ajuda, meu Deus, porque estás ferido e exangue. Precisas que eu trate de ti, que te vele, que te dê um pouco do calor que guardo em mim, dentro das camisolas de lã. Que eu guarde este calor por ti, dentro de mim.
Eu queria ser o coração pensante dos barracões, meu Deus, porque todos os outros estavam tão ocupados, sempre mais atarefados do que eu. Porque os outros tinham filhos pequenos e os pais a morrerem, e estavam terrivelmente assustados. Mas eu não tinha medo, podia pensar por eles. Podia levar os pensamentos deles até ti, meu Deus, como um correio que não abrisse as cartas para as censurar. Queria ser o coração pensante, quando os outros não tinham tempo para pensar, à procura de comida, agasalho e notícias. E queria ajudar-te a pensar com eles, pensar os pensamentos deles.
Eu ajoelhava em frente ao urzal, meu Deus, o urzal atrás do arame farpado. E tu estavas ali, pobre, atrás do arame farpado. Os raios de sol nas urzes, na água gelada, atrás do arame farpado.
Deixa-me agora ser o coração do vagão, meu Deus.
Estão demasiado cansados, mal conseguem falar. Mas se eu levar o meu pensamento pela noite fora, toda a viagem de comboio, até ao fim, é como se guardasse um pouco de calor, intacto, por nós todos. Deixa-me guardar o resto do pensamento. Mesmo a tremer, mesmo a cair de cansaço ainda hei-de conseguir um pouco de força para te amparar. (...)
Eu aceito tudo , meu Deus. Continuo a ajoelhar, e ajoelharei no vagão e no campo, como ajoelhei em frente ao urzal. Se eu não te ajudar, meu Deus, quem te levará até à morada da morte?
Espreito pela frincha, o ar entra, tudo está morto. Montanhas e florestas.
Tenho tudo dentro de mim, mesmo quando é tão difícil.
Partimos de Westerbork há dois dias. Como se a viagem durasse anos de vida. Pode-se envelhecer vidas inteiras num vagão, durante uma noite. Todos nós, mesmo as crianças, somos agora muito velhos. Com mais velhice do que cabe numa vida. Amanhã chegaremos ao campos, e ninguém sabe o que acontecerá. Correm rumores horríveis. mas seja o que for que nos espera, meu Deus, eu aceito. Mesmo na morada da morte te ajudarei.
Olho pela frincha. Lá em cima, a Ursa Maior, clara, nítida, e fria. Que nos acompanha desde a partida. Por que é que as estrelas andam quando eu ando, perguntou-me uma criança em Westerbork, e param quando eu paro?
Uma pequena força dentro de mim.
As estrelas brilham sobre a neve. Uma claridade branca começa atrás dos montes, o dia nasce do lado para onde o transporte avança. Vejo um caminho, uma casa. Um regato gelado. Luzes ao longe, uma cidade. Uma placa a indicar a direcção.
Consigo ler a placa: "Leipzig".
E a neve recomeça a cair.
Uma pequena força, meu Deus, dentro de mim.
Pedro Eiras. (2014). "Etty Hillesum", in Bach. Porto: Assírio& Alvim
Imagem - Capa do livro que junta os Diários de Etty Hillesum (1941-43) e que como Anne Frank vivia em Amesterdão; Copyright - persephonebooks
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