venho dizer destas ruas que o sol
aperta, e as sombras e os panos e as tranças nas meninas que passam - crianças
que olham o mar com a simplicidade das pedras, aqui onde todas as varandas
penduram ausências de gentes por regressar. os pássaros voam parados, suspensos
e próximos, dando sombra às árvores e graças ao céu azul.
vejo telhados sobre as pedras e pedras
sobre a ilha, mas o chão respira uma frescura humana, os panos vestem as
pessoas e as pessoas buscam negócios de regateio. chega um barco cheio de
palavras caladas. (...) mais tarde a noite dará voz às sombras, as sombras
serão calmaria e escuridão. as árvores beijarão os pássaros. os dedos hão de
alcançar um torpor de mansidão. (...)
o apito de partida é o sinal de chegada
àqueles que decidem ficar.
é de tarde ainda e quase noite: são os
pássaros que o dizem. no céu não existem lágrimas; chegou a lua; as árvores
adormeceram e sinto no ar, nos restos desta tarde senegalesa, um arfar de
madeiras. não vejo canoas, sinto apenas a sua dança, um embalar de braços e
ondulações, uma cantoria de remos, um poema molhado no sal.
quero a lua sobre a mesa - junto ao
peixe, ao molho, ao arroz que devolve à minha refeição o branco do luar. quero
conchas rumando ao meu quarto vazio, quero lençóis plenos de uma maresia fresca
- para que a noite resulte e, depois dela, nas frestas do meu lençol branco, a
madrugada possa vir sorrateira aprisionar-me em mim.
quero um grilo calado, um pirilampo em
sereno apagamento. vozes para voos rasantes, ou uma luz negra que, sem acordar,
acabasse por adormecer. (...)
pela manhã, vi o sol no mar e as ondas
do meu olhar. uma saudade amarela abateu-se sonre mim e eu ri - porque era cedo
e porque as nuvens não tinham chegado ainda. havia um anzol no meu sorriso.
vi os homens perto do cais e as ondas
por trás e os imbondeiros, perto das crianças que esquivam as pedras de sorriso
aberto.
Ondjaki. (2014). "Gorée", in Sonhos azuis pelas esquinas. Lisboa: Caminho.
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