Um corpo sem peso que se escusa a pensar. A imponderabilidade dissolve hierarquias e ficam os pés iguais à cabeça e a dedos esticados. Um corpo que não tem peso não sente a terra nem os homens e entrega-se às correntes e ao tempo. O peso de um homem é âncora enterrada na realidade.
Os peixes e os pássaros não sabem cair e é por isso que guardam o mundo e o emprestam aos deuses que vão e vêm na cabeça dos graves. O deus de deus há-de ser um passarão que voa pelas coisas sérias.
Jorge está deitado num rio largo e fundo. A água fria sustém-lhe o corpo e enche-lhe os sentidos de um ardor vital, é tudo azul e fresco, tudo muito bonito. Para boiar nas águas, é fundamental deixar de ouvir, fechar os ouvidos por dentro e cair inteiro num silêncio líquido. É possível boiar na água sem água, basta encher-se de silêncio.
O Verão decorre sereno e igual, o sol alonga as horas e sobram dias inteiros em que nada tem de acontecer. Num quadro pendurado não passa o tempo porque nada muda, a beleza é uma arte de fugir ao tempo, de o confundir, de o tornar espaço e azul. Já em terra, Jorge embrulha-se numa toalha e encosta-se à família. Ninguém fala, estão concentrados no jornal, na renda e nos livros. Têm um modo de amar que prescinde de palavras, basta-lhes estar ali e saber que não estão sós. (...)
Pelo horizonte dissolvem-se planícies pintadas de erva. Faltam nomes para tantos tons de uma mesma cor e Jorge inventa-os: vesbellho, letusto, zafaio, lusvigo. Depois esquece-se a que pertencem, mas não têm importância.
As sombras das nuvens correm pela erva e essa é outra cor ainda, uma cor cor escura a correr. Que nome tem uma cor que foge? Jorge deita-se a observar as nuvens. É um jogo antigo, pegar no branco e moldá-lo com a imaginação até que ele seja um dragão, um monstro, uma sereia. Imagem, "imago, imitaginem." Quem foi o primeiro a fazer ideias com nuvens?
Um tigre passa-lhe por cma e é dourado como poucos. Leva um brilho novo e, ao desfazer-se, fica à vista uma bola amarela que não é daquele céu. Jorge fita a bola de luz até os olhos começarem a doer. é um sol de outros, pensa, uma luz que anda perdida. à memória chegam-lhe as histórias fantásticas lidas muitas vezes, mundos que acabam, viagens pelo espaço, seres longínquos capazes de destruir ou de criar. Aquele amarelo é cheio de possibilidades e não há nuvens que o possam voltar a esconder.
Nessa mesma noite, quando Jorge fecha os olhos para adormecer, a bola amarela espera-o brilhante. Foi a primeira vez que dormiu com uma luz acesa por dentro e passou a ser essa a cor da sua noite.
Nuno Camarneiro. (2013). "Rio Negro", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
Nuno Camarneiro. (2013). "Rio Negro", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
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