quarta-feira, 14 de junho de 2017

A palavra e o mundo - estender os sonhos (III)

Quase dou razão aos meus adversários: o que há aí, nesses volumes de escolástica, que me sirva hoje? Mesmo nos meus escritos, volume a volume as mesmas ideias recomeçadas, o ensaio infinito do pensamento: que existe nos capítulos para continuar a pensar? Volume a volume, tantos textos, tantas vezes as mesmas palavras. 
Resisto. Abro o meu pequeno discurso de metafísica, estas folhas gastas, leio as linhas que caem sob os meus olhos:

"toda a substância é como um mundo inteiro e um espelho de Deus, ou de todo o universo, que cada uma exprime à sua maneira, como uma mesma cidade é diversamente representada segundo as diferentes posições de quem as vê. Assim, o universo está multiplicado tantas vezes quantas as substâncias existentes, e a glória de Deus redobrada por tantas representações diferentes da sua obra."

Assim escrevi, há tanto tempo. Recordo. Assim eu mesmo em frente a esta janela exprimo todo o universo de acordo com o meu ponto de vista. A mónada que eu sou -substância simples e indivisível - perspectiva o infinito das coisas de tal modo que, se se desdobrassem inteiramente as minhas percepções, o universo inteiro estaria contido, presente, passado, futuro, na minha substância. E como eu sou apenas uma mónada sobre o infinito, Deus é o infinito das mónadas, e a glória.

Mas se cada substância simples espelha Deus, se a mónada exprime o infinito, exprime-o e espelha-o de modo imperfeito, claro no pensamento, obscuro quando os olhos se prendem na janela embaciada e os ouvidos no barulho que as rodas das caleches fazem na rua, lá em baixo, som amaciado pela neve, quando eu apenas percepciono o presente e ignoro o s tempos pretéritos, mas alcanço o futuro. Pois se Deus é presente em cada substância, o ponto de vista de cada substância torna o distinto confuso. (...) 

bebo o chá. Expiro, e sigo a nuvem de vapor a sair da minha boca.
Assim como as ondas, também o som da neve caindo sobre os caixilhos, e o som do vapor que expiro e se desfaz no ar. Pois essa música composta é perceptível, ainda que eu não saiba discernir cada parte. E assim ouvimos mas somos surdos, percebemos o universo e somos cegos. (...)

De novo a pena se suspende. É vão o que escrevo? Tratados, cartas, discursos, o sonho de uma matemática universal. E contudo, eu descobri o infinito em todas as coisas, eu soube que mesmo na unidade se dobram todos o números, que um valor finito é a soma de infinitos valores, pois pode-se desdobrar sempre um corpo, ver o universo num floco, numa pequena pedra, nestas tulipas sobre o parapeito da janela, pétalas a estalarem, as bordas carcomidas já, oxidadas, queimadura minúscula. (...)

Sim - e que nesse mundo determinado, harmónico, o melhor de todos os mundos possíveis, exista uma razão para a própria dor, um fim último desejado, uma razão para a dissonância tal como se apresenta aos nossos ouvidos, parte de uma harmonia maior que só o concerto das mónadas poderia ouvir, a unidade de todos os entendimentos de Deus. Assim uma razão para a neve, para Hanôver, as tulipas no vaso e as dores nas articulações do meu corpo. Uma razão para ecscrever e para não escrever, para a música e o silêncio, uma razão, por todas as coisas distribuída, uma pequena razão. (...)

Arrasto a cadeira, limpo a humidade dos vidros, avisto a rua. A rosácea de sangue sucumbiu sob a neve. Não vejo a criança ferida, e não ouço choros, queixas, consolações. O manto branco esquece tudo.
Tenho frio.

Pedro Eiras. (2014). "Gottfried Wilhelm Leibniz", in Bach. Porto: Assírio& Alvim
Imagem - Friso do pórtico principal da Câmara Municipal de Hanôver

Sem comentários:

Enviar um comentário