Uma outra vida à espera no cais. Tias engalanadas em lenços de seda e luvas brancas como mãos de porcelana. Vamos lá ser menino com um sorriso que é de cara e não é de mais nada. A viagem chegou ao fim e Lisboa é o fim do mar.
Junto às tias e a esta terra, tudo volta a ser pequenino. O sufixo parece ser anterior às palavras, o menino está cansadinho, a viagem foi boazinha, estão tão branquinho, coitadinho. Portugal é assim, diminutivo e manso. O que foi chegando fez-se à escala e por cá ficou, as Indiazinhas, as Americazinhas, os pretitos, pobrezinhos. Os Portugueses não querem nada que não possam meter no bolso. Como é que esta gente descobriu tanto mundo?
Os passageiros descem as escadas e alteram-se a cada passo, passam a ser filhos, sobrinhos, maridos e mães. No barco cada um foi o que quis e pôde, feito à medida de sonhos e frustrações, personagem entre actos, entr5e o ter partido e o ainda não ter chegado. à saída a vida não permite já devaneios e um nome dito por quem o diz é um grito de realidade.
Fernando não foi nada durante a viagem, apenas olhos de ver e uma cabeça de inventar filosofias. Agora é o sobrinho das tias e dá beijos e abraços. Há um grande conforto no encontrar o que se espera e uma coisa deve ser sempre aquilo que é. Lisboa é Lisboa, as tias são as tias e faz calor porque o Verão ainda não morreu.
A capital é um país de boca aberta para o rio, uma cidade a cantar modas de outro tempo, sempre de outro tempo. Em Portugal inventou-se o viajar no tempo, mas sempre para o passado, sem nunca se sair de onde um dia se partiu.
As ruas passam pela janela do carro, há gente que caminha, gente que vende e gente que leva objectos de um sítio para outro. Há muitos pobres mal vestidos e há também muito ruído de vozes gritadas e rodas na calçada. As tias fazem perguntas que se vão respondendo com sim, não e mais ou menos. As tias têm medo de um silêncio que não existe, são mulheres educadas e boas que penteiam os cabelos de Fernando quando lhes faltam ideias ou palavras.
Os cavalos puxam o carro e Fernando sente-se puxado pelas tias, levado a trote para uma casa que ainda não é sua e nem chegará a ser. Os cavalos e as tias conduzem-lhe o destino sem lhe perguntar nada, é uma surpresa para o menino embrulhada numa rua de Lisboa. As tias são mulheres sérias que lhe imaginam uma vida inteira.
A rua das tias tem árvores a todo o comprimento e há beleza nisso, as árvores são próximas do silêncio. Os cavalos param, o carro pára e durante alguns segundos tudo fica tranquilo como um quadro antigo que se pode e deve admirar.
O cocheiro sobe as escadas com a mala apoiada nas costas, seguem-se as tias e depois Fernando que conta os degraus. Habituou-se a medir as distâncias em passos para que o corpo as possa entender. As milhas e os metros são unidades da cabeça, já os passos são quedas pequenas que o corpo aprendeu a aparar.
Da rua ao vestíbulo são vinte e oito degraus e duas pernas cansadas de tanta viagem.
A casa cheira a sopa e a alfazema, os móveis têm formas austeras e por todo o lado se encontram rendas e bordados de mulheres sem marido. Fernando senta-se e olha em volta, aturdido. Bebe da água fresca que lhe trazem e permanece imóvel e tímido à espera que alguém diga alguma coisa. As tias sorriem porque estão contentes e estão em casa e Fernando sorri também.
Nuno Camarneiro. (2013). "Lisboa", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
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