O professor
circula pelas bancadas distribuindo as dissertações corrigidas e classificadas. Ao chegar a Fernando, entrega-lhe a sua com um gesto lento e reprovador.
- É uma pena, senhor Fernando, uma verdadeira pena.
Depois afasta-se para iniciar a aula. Os colegas riem num escárnio acerado que fere o orgulho de Fernando.
A nota é miserável, a mais baixa que teve em todas as disciplinas. Fernando percorre as páginas sem encontrar correcções, uma ou outra vírgula, uma gralha evidente e nada mais. No final do texto está um comentário do professor.
"O senhor é sem dúvida dotado de uma finíssima inteligência, não há como negá-lo. O estilo refinado da sua escrita eleva a prosa e dá cor e alma a tudo o que trata. O senhor Fernando tem mão e cabeça de poeta, mas infelizmente deixa que seja a poesia a tomar conta de si, e não o contrário, como seria desejável.
O mundo, senhor Fernando, é para ser visto e entendido, não inventado."
A última frase ressoa imensa dentro de Fernando. sente-se a ponto de entender uma verdade, algo importante que lhe será claro assim que acalmar o espírito e a vertigem. O mundo não é para ser inventado, repete Fernando, o mundo é para ser visto e entendido.
A voz austera e grave do professor arremessa frases que os seus colegas ouvem como certas, hão-de guardá-las nos cérebros mansos nem que tenham de deitar fora outras que por lá andavam. Um dia vão repeti-las e multiplicá-las para que continuem a ser verdade, ouvidas e entendidas, nunca inventadas.
Como pode alguém domar a poesia? Um poeta é apenas um lugar por onde o poema passa. Se um escritor inventa mundos é porque há mundos que querem ser inventados.
A vertigem aumenta em vez de diminuir. Fernando teme uma nova febre ou uma apoplexia. Imagina as palavras a rebentarem dentro de si, derramando-as pelas entranhas e misturando-se no sangue. Palavras que saem de onde estavam e se perdem no corpo, fervendo, inchando, queimando. Como pássaros que não cabem.
A lição termina e os colegas levantam-se para sair. Ao passarem por ele, trocam alguns comentários em voz alta, para que os ouça e se sinta pior. Por fim, também ele se levanta e dirige-se em passo lento até à saída. Vai enjoado nos passos, mareado com tanto que acaba de entender. Aquela foi uma aula onde aprendeu muito, talvez a aula mais importante a que alguma vez assistiu.
Ao chegar à rua, levanta a cabeça e apercebe-se do ridículo de tudo. Do seu ridículo, do professor, dos colegas, da universidade onde o saber gira há séculos à procura de uma janela. Que inútil tanta pedra para guardar tão pouca coisa.
Nuno Camarneiro. (2013). "Lisboa", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
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