Este azul é cor de sítio nenhum. Um lugar que foge aos sentidos por medo e finitude. Olha-se como não vendo, porque é tanto mar que não cabe em gente. Chamar-lhe mar ou chamar-lhe céu, chamar nomes às coisas que riem de nós e de deus. O mar inventou-nos a nós e depois a deus.
No mar vai um barco e no barco vai um homem por ser, um rapaz que deixa um lugar por outro. na cabeça do rapaz há muitas ideias misturadas, também contradições e medos e o tempo infinito de tudo o que se desconhece.
O barco é uma cidade lenta de gente incógnita. pelo convés e pelos corredores, cruzam-se olhos desamparados que se fazem maus porque estão sós e longe. No meio dessa gente vai Fernando virado para dentro e nada o surpreende, nada o pode assustar mais do que já está. É um rapaz que vê a vida mudar de rota, como o barco ou outra coisa grande. Fernando acabou de jantar e fechou-se no camarote, dentro há uma cama pequena, um baú com o que é seu e uma secretária roída onde se pode escrever. Fernando escreve.
"Da última vez estavas igual, tinhas já essa cor de ir e vir dentro de ti. Lembro-me, tu sabes que me lembro. Agora eu sou maior e tu continuas como sempre. Ganho eu. Tens vantagens claras, claro que tens, nós estamos de passagem, agarrados ao que ficou e incertos no que será, tu não.
Se eu fechar a escotilha ficas todo lá fora, sozinho contigo, sem deuses que te aturem, és demasiado grande para chegares a mim, não tens dedos que me agarrem nem olhos de ver ao perto. as tuas ondas poderiam ser rugas se eu quisesse, sabes que o posso fazer? És um bruto desajeitado que esmaga os brinquedos e faz birras a fingir ódio. Entretanto nós passamos, baixamos os olhos e rezamos baixinho para que tu vejas e tenhas pena, mas eu rio por entre as rezas e tu não me vês.
Gosto de te ter por perto, assim como estás agora, ao alcance de te querer. se eu quisesse juntava-me a ti e seria mar também. Mas não quero, ainda não. Tenho os meus deuses para inventar e acredito ainda em cores que não são tuas. Um dia, um dia é o tempo de tudo o que haveríamos de ter sido, e eu ainda tenho dias para mundos maiores do que tu. Se eu quisesse, tu eras um segundo pequeno de uma vida por fazer, sabes o que posso querer? Agora durmo, agora és noite e tens a cor de tudo o resto (o mar não dorme, pois não?).
Não sonhas, mas és sonhado e não há nada que possas fazer.
O tempo das ondas parece-nos curto porque as vidas pequenas que vivemos nos deixam ainda ver tantas. Para o vento as ondas são montanhas azuis. Homens que viajam são o vento de quem espera e de quem fica. Tempo que vai e volta e se esquece no passar. Os homens eternos chamam deuses aos ventos e riem sozinhos ao acordar."
As palavras escritas ficam ali sobre a secretária a baloiçar com o barco nas ondas. Fernando deita-se e fica à espera do sono ou de chorar. Um corpo deitado não espera muito e entrega-se ao que vem.
O barco é uma máquina de mudar vidas, um movimento certo como o tempo. Dentro vão as vidas de gente (....). Um corpo que viaja a velocidade constante perde a noção do movimento mas não esquece que é um corpo, faz o que tem a fazer e depois dorme e é já outro dia e outro lugar.
Nuno Camarneiro. (2013). "Oceano Atlântico", in No meu peito não cabem pássaros. Lisboa: D. Quixote.
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