quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - As cidades invisíveis (II)

"(...) quem ouve só fixa as palavras que deseja (...) Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido" (pág. 142)

Em As cidades invisíveis, Italo Calvino revela-nos como a cidade se constrói, se delimita, se habita com o seu nome, com a morte, com os espaços celestes, com a respiração de um tempo infinito. As cidades ocultas, as que apenas se pressentem e as que indiferentemente conhecemos, as que estão em toda a parte. E que gestos, que modos fazem transformar a cidade, os seus espaços, a sua transfiguração, de modo a que ela seja "cristalina, transparente como uma libélula"(pág. 165). A cidade dos enraízados e a dos que viajam, dos que sonham, dos que ambicionam o sonho da errância, como se revivem, como se libertam? E não é cada cidade uma junção de todas as que nela viveram, ousaram ser um espaço acima de qualquer tempo?

As cidades invisíveis dá-nos ainda um diálogo fascinante entre Marco Polo e Kublai Kan, o imperador dos Tártaros e remete-nos para as possibilidades da construção do Império,  de qualquer um. O que pode o viajante Marco Polo explicar ao Imperador pelas suas viagens, as suas descrições. As palavras, o pensamento, a memória, o desejo de Marco Polo permitirá a Kublai Kan compreender a filigrana que organiza a cidade? A viagem de Marco Polo ou o Império de Kublai Kan são apenas o reconhecimento do pouco que a sua vida terá, que a nossa vida terá, no sonho do tanto inconcebível de concretizar, das cidades fixadas em palavras, ou perdidas em fórmulas inverosímeis.

No fim, pode ser traçada uma ordem invisível que governe as cidades, que nos faça compreender a sua orgânica como organismo vivo? O  real, a materialidade do império reduzido à sua essência, conduz-nos a um intrigante nada. A inútil concretização do nada, nas ruínas dos conquistadores.

Na inútil tentativa de encontrar a cidade descontinuada no espaço e no tempo, encontrá-la significa que no desconcerto da vida, precisamos saber reconhecer a força bela que a poderá fazer renascer, o que de melhor pode viver em nós. É a cidade invisível que vive acima do que é visível, do que não vemos, das ruínas do tempo. A cidade invisível também como formulação de uma esperança, a energia para uma libertação, a que permite construir caminhos novos, o progresso civilizacional que alguns sonham e que importa reconstruir em cada geração.

Italo Calvino.(2012). As cidades invisíveis. Lisboa: Quetzal, pág. 142
Imagem, "Ciutat", Tomasz Pietryk

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