terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

A palavra e o mundo - As cidades invisíveis (I)

…  Recém-chegado e ignorando completamente as línguas do Levante, Marco Polo não podia exprimir-se de outro modo que não fosse retirando objectos das suas malas: tambores, peixes salgados, colares de dentes de facóquero, e indicando-os com gestos, saltos, gritos de espanto ou de horror, ou imitando o latido do chacal e o piar da coruja. (…)

Mas o que tornava preciosos a Kublai todos os factos ou notícias referidos pelo seu inarticulado informador era o espaço que ficava à volta deles, um vazio não preenchido por palavras. As descrições   das cidades visitadas por Marco Polo tinham esse dom: podia andar-se por elas com o pensamento, nelas podíamos perder-nos, para apanhar fresco, ou fugir a correr. Com o passar do tempo, nos relatos de Marco as palavras foram substituindo os objectos e os gestos: primeiro exclamações, nomes isolados, áridos verbos, depois pedaços de frase, discursos ramificados e frondosos, metáforas e hipérboles. (…)

Kublai Kan apercebera-se de que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a paisagem de uma para a outra não implicasse uma viagem mas sim uma troca de elementos. Agora, de todas as cidades que Marco lhe descrevia, a mente do Grão Kan partia por sua conta e risco, e desmontada a cidade peça a peça, reconstruía-a de outro modo, substituindo ingredientes, deslocando-os, invertendo-os. Marco continuava a informá-lo da sua viagem, mas o imperador já não o ouvia, interrompia-o: – De agora em diante serei eu a descrever as cidades e tu verificarás se existem e se são como eu as pensei. (…)

Do número das cidades imagináveis temos de excluir aqueles cujos elementos se somam sem um fio condutor que os ligue, sem uma regra interna, uma perspectiva, um discurso. São cidades como sonhos: todo o imaginável pode ser sonhado mas também o sonho mais inesperado é um enigma que oculta um desejo, ou o seu contrário, um terror. As cidades como os sonhos são construídos de desejos e de medos, embora o fio do seu discurso seja o secreto, as suas regras absurdas, as perspectivas enganosas, e todas as coisas escondem outra. (…)

O Grão Kan contempla um império recoberto de cidades que têm peso sobre a terra e sobre os homens, a abarrotar de riquezas e de movimento, repleto de ornamentos e de incumbências, complicado de mecanismos e de hierarquias, inchado, largo, pesado. “É o próprio peso que está a esmagar o império”, pensa Kublai, e nos seus sonhos agora surgem cidades leves como papagaios de papel, cidades perfumadas como rendas, cidades transparentes como mosquiteiros, cidades nervuras de folhas, cidades linhas da mão, cidades filigrana para ver através da sua opaca e fictícia espessura.


Italo Calvino. As cidades invisíveis. Lisboa:Teorema. 2011.

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