terça-feira, 7 de outubro de 2014

A memória de Saramago

Foi há dezasseis que José Saramago e a literatura portuguesa foram destacadas pela atribuição de um Nobel. Saramago é um dos autores que vive entre uma adoração de fiéis e outros que não o entendem bem. Dificuldades com a sua escrita, muito próxima da transcrição oral, dos seus temas, da sua postura na vida. A obra de Saramago, é no essencial a celebração em palavras sobre a experiência da sua vida, o seu olhar. 

A escrita de Saramago, como nos grandes autores procura chegar a algo mais fundo que a experiência da imaginação, a essência de que somos feitos, o interior do homem. Um dos livros que melhor o apresentam é a sua autobiografia enquanto jovem. Deixamos um excerto no aniversário do seu Nobel, de um autor a que voltaremos em outras ocasiões, nomeadamente em junho, como autor do mês.

"Às vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de episódios de que eu tivesse sido actor inconsciente e dos quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que neles houvessem estado presentes, se é que não falariam, também elas, por terem ouvido contar a outras pessoas. 

Não é esse o caso daquela escolinha particular, num quarto ou quinto andar da Rua Morais Soares, onde, antes de termos ido viver para a Rua dos Cavaleiros, eu comecei a aprender as primeiras letras. Sentado numa cadeirinha baixa, desenhava-as lenta e aplicadamente na pedra, que era o nome que então se dava à ardósia, palavra demasiado pretensiosa para sair com naturalidade da boca de uma criança e que talvez nem sequer conhecesse ainda. É uma recordação própria, pessoal, nítida como um quadro, a que não falta a sacola em que acomodava as minhas coisas, de serapilheira castanha, com um barbante para levar a tiracolo. 

Escrevia-se na ardósia com um lápis de lousa que se vendia em duas qualidades nas papelarias, uma, a mais barata, dura como a pedra em que se escrevia, ao passo que a outra, mais cara, era branda, macia, e chamávamos-lhe «de leite» por causa da sua cor, um cinzento-claro, tirando a leitoso, precisamente. Só depois de ter entrado no ensino oficial, e não foi nos primeiros meses, é que os meus dedos puderam, finalmente, tocar essa pequena maravilha das técnicas de escrita mais actualizadas.”

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