terça-feira, 21 de outubro de 2014

António Manuel Pina - a lembrança de uma memória

"A beleza é o rosto mais jubiloso da verdade. Não da própria verdade, mas do seu rosto". (1)

Os dias são muitas vezes tão sucessivamente rápidos que muitas memórias nos escapam. O tempo torna-se reduzido para inscrever no íntimo tantas vozes que tentaram connosco dar aos dias uma cor própria, um sentido vivido de consistência e beleza. António Manuel Pina desapareceu fisicamente a dezanove de outubro de dois mil e doze. É uma voz que vale a pena recuperar. Pela poesia, pelas crónicas, que nele eram uma arte de desmontar o essencial e pela prosa.

António Manuel Pina foi um homem que buscou nas palavras uma tentativa de fazer compreender a nossa natureza efémera. Foi daqueles que vindo das terras do Mondego, dos contrafortes da Estrela se fez e se encontrou na cidade do Porto, como forma de desenhar na natureza agreste das pedras, o seu caminho de combustão de sonhos, no veludo das encostas de granito.

António Manuel Pina tinha uma paixão pelo Winnie the Pooh. Olhava para a literatura infantil como a possibilidade de reencontrar o olhar inicial, o que está pronto para a linguagem do mundo, ainda sem o conhecer. Revelou uma curiosidade para traçar pela poesia as grandes questões filosóficas de sempre inerentes à natureza humana e descobriu na solidão a possibilidade de erguer sonhos.

Refletiu sobre a sociedade em que viveu com liberdade, com inteligência e com criatividade. Deu-nos no JN um conjunto de crónicas sobre esse real que se sonha e que não se compreende pela ausência de uma real cidadania. Desse real, em que instituições e media, precariamente percebem o significado do velho ideal grego, "Libertas, Humanitas, Felicitas". 

Foi um cronista que ousou utilizar as palavras para discutir "as verdades" que o establishent político gosta de enumerar como os pilares do universo, por onde interesses privados se alimentam da destruição mais básica dos valores de dignidade de tantos. António MAnuel Pina foi um prosador e com as palavras procurou exercer a liberdade que nos falta, a que tem uma dimensão moral.

E foi um poeta. Um poeta que nos descreveu como nos orientamos com os mitos, como respiramos o real, entre os lugares e as suas sombras, por onde tentamos reconhecer os gestos. Nunca nos recompomos da partida dos poetas, pois o timbre da voz é irrecuperável, mesmo que a memória e as palavras queiram colaborar nessa luta à partida perdida, de guardar o sorriso no templo desse "dragão feroz" (2) que é o próprio tempo.

(1) Entrevista a António Manuel Pina, in Jornal i, 18/02/21012 
(2) Ana Maria Matute, Paraíso Inabitado 

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