"De longe é oprimum tempus que avança, parecendo despertar do seu sono de milénios. Vê-se então a paisagem que se estende como um belo e amplo painel de azulejos, mas pouco se compreende. À parte o jogo das linhas que sobem e descem em quadros de luz e sombra cruzando o relevo, tudo o resto é difuso e parece que cai a pique sobre o mar. De perto, porém, distinguem-se as coisas singulares. Todas elas têm cor, forma, som. Este, por exemplo, é António. Aqui o temos numa singular errância, olhando para o oceano poderoso enquanto conduz o automóvel - uma visão que se abre a partir do momento em que, apesar do frio, desce um pouco o vidro, a fim de respirar o ar característico do amanhecer na ilha, numa variedade de aromas que apela aos sentidos e convida à meditação.
À custa do último orvalho, o asfalto brilha como a pele juvenil de uma maçã e a brisa húmida e fria sente-se particularmente, à medida que o carro adentra neste alinhamento de incensos, sanguinhos, vinháticos, loureiros, criptomérias e plátanos, alguns dos quais sobressaindo irsutos e agrestes, com os ramos a rasgar a ténue claridade. Estranha desde logo nunca ter dado atenção a semelhantes detalhes: a correria nervosa e esquiva dos coelhos bravos, o cortejo de narcejas debicando nas covas, as tímidas codornizes ou o pasto arrastado do gado nas encostas, cujos chocalhos cadenciam a madrugada como se fossem os sinos de um templo.
Tendo agora todo o tempo do mundo para pensar, apercebe-se da distância percorrida durante a noite: uns vinte quilómetros de estrada sinuosa, ora enrolada sobre si mesma ao longo da costa, ora cortando para norte - e aí com mais suavidade, ao atravessar as pastagens -, intercalando a sensação de abismo, causada pelos precipícios, com a de brandura, causada pelas planícies. Esta averiguação motiva nele um sorriso de par em par; um sorriso alegre, intenso, ingénuo, que se prolonga por momentos no seu rosto. Por outro lado, também sorri comovido com o cântico dos canários e com as primeiras investidas dos melros, saltitando nas clareiras desamparadas.
Só quando desliga o rádio consegue ouvir nitidamente a complexidade de sons que a música e os anúncios antes abafavam e uma vez mais sorri, dada a simplicidade do que observa. Naturalmente vem a descobrir, a partir do pequeno mundo dentro do mundo que é o seu automóvel, um sentimento jamais experimentado, acerca do campo e do mar, e sem perceber porquê sente o sangue na face como alastra um incêndio pela erva seca, enquanto esfrega os olhos com o nó dos dedos para não adormecer ainda.
Bem ao fundo, aconchegada entre o mar e os montes, emerge da neblina (nas palavras de Italo Calvino) a rosa branca das habitações. Até lá, um manto de ervas, linhas de árvores e flores pequeninas; e à esquerda, num recorte, o espelho azul de uma lagoa. Respira fundo, desliga os faróis, desce até baixo o vidro do seu lado, a fim de evadir-se nos frescos odores dos eucaliptos e das rocas de velha, e assim guia um par de quilómetros, à luz aberta, mas concentrada, do alvorecer.
Até que na dobra de uma curva chega enfim o primeiro sinal de vida humana: um rapazito que irrompe a assobiar, guiando o gado para a ordenha. Sentindo-se feliz, evoca Darwin - quando em setembro de 1836 se cruzou com pastores na sua visita às Furnas do Enxofre -, abranda a marcha e encostando à berma estende o braço para fora, acenando-lhe. Como se quisesse ser ele.
Até que na dobra de uma curva chega enfim o primeiro sinal de vida humana: um rapazito que irrompe a assobiar, guiando o gado para a ordenha. Sentindo-se feliz, evoca Darwin - quando em setembro de 1836 se cruzou com pastores na sua visita às Furnas do Enxofre -, abranda a marcha e encostando à berma estende o braço para fora, acenando-lhe. Como se quisesse ser ele.
Rui Machado. (2009). O Mergulho. Lisboa: Portugália Editora.
(De um livro que me chegou primeiro pela simpatia de alguém que o revelou nalgumas palavras iniciais e de pois pela sua descoberta. Mergulho é um livro sobre essa ideia de mistério e de flutuação, onde individualmente nos confrontamos connosco. Mergulho do escritor connosco leitores, na descoberta do mundo, usando uma abordagem poética da prosa. Mergulho no silêncio, nessa cadência das palavras que se descobre num mundo de ruído. Mergulho é um livro que vale a pena descobrir, numa imensidão de vazios que tanto vemos em tantos destaques livreiros. Talvez valha a pena considerar a possibilidade de o cativarmos para um encontro. O primeiro passo é lermos as suas palavras.)
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