terça-feira, 14 de outubro de 2014

Leituras ... Os livros e as palavras

Texto 2: " Não há talvez dias da nossa infância que tenhamos tão intensamente vivido como aqueles que julgámos passar sem tê-los vivido, aqueles que passámos com um livro preferido. (...)

Depois a última página era lida e o livro estava acabado. Era necessário deter a correria dos olhos e da voz que os seguia sem ruído, parando apenas para retomar o fôlego, num profundo suspiro. Então, a fim de dar aos tumultos há demasiado tempo desencadeados dentro de mim para conseguirem acalmar-se outros movimentos para executarem, punha-me de pé, começava a andar ao longo da minha cama, com os olhos ainda fixos num ponto qualquer que seria inútil procurar no quarto ou lá fora, pois se situava apenas à distância de uma alma, uma dessas distâncias que não se medem em metros e em léguas, como as outras, e que é aliás impossível confundir com elas quando se vê os olhos "distantes" de quem está a pensar "noutra coisa". Enrão, era isto? este livro, não passava disto? 

Aqueles seres a quem havíamos dedicado mais atenção e ternura do que às pessoas da vida, nem sempre ousando confessar a que ponto os amávamos, mesmo quando os nossos pais nos encontravam a ler e pareciam sorrir da nossa emoção, fechando o livro, com uma indiferença simulada ou um aborrecimento fingido; esses seres por quem havíamos tremido e soluçado, não voltaríamos a vê-los nunca mais, não viríamos a saber mais nada deles. (...)

A atmosfera desta pura amizade é o silêncio, mais do que a palavra. Porque nós falamos para os outros, mas calamo-nos muitas vezes para connosco mesmos. É por isso que o silêncio não traz consigo, como a palavra, a marca dos nossos defeitos, das nossas caretas. Ele é puro, é verdadeiramente uma atmosfera. (...) A própria linguagem do livro é pura (se o livro for digno desta palavra), tornada transparente pelo pensamento do autor que dele retirou tudo quanto não fosse ele próprio, até o transformar na sua imagem fiel".

Proust, Marcel. (2011). O Prazer da Leitura. Alfragide: Teorema.

(Juntamente com um excerto do livro de Jacques Bonnet, Bibliotecas cheias de fantasmas, tem-se estado a apresentar a Biblioteca aos alunos do décimo ano, tentando discutir com eles, que valor têm os livros, que significado tem a leitura, o que ela nos pode dar, introduzindo as suas ideias numa aplicação digital. Alguns dos mais interessantes serão publicados de seguida.)

Sem comentários:

Enviar um comentário