"Eu via uma floresta. Mas não
era realmente uma floresta; era a penas o velho pomar nas traseiras do casarão
em cuja propriedade se encontrava a minha casa. Aquilo que via, via-o muito
claramente. Mas não sabia para que estava a olhar. Não tinha nada em que
pudesse encaixar aquilo que via. Sentia-me ainda uma espécie de limbo."
(1)
V. S. Naipul tem uma obra longa e
premiada, com destaque para o Booker Prize de 1971 e o Prémio Nobel da
Literatura em 2001. Natural de Trindade, nas Caraíbas descende de uma família
de origem indiana, cujos antepassados vieram da Índia para as Antilhas no
processo de globalização económica que foi o Império Inglês no século XIX. V.
S. Naipul concilia uma ironia e uma observação britânica com um espírito de
análise e um minimalismo de vida ligado ao hinduísmo e à sua memória.
Partiu jovem para Inglaterra para
estudar Literatura em Oxford e a sua vida de escritor mistura-se, a
partir de certo momento com a do homem. Processo e descoberta difícil, enquanto
o escritor não compreendia que homem o habitava, nessa relação de culturas que
viveu de forma intensa. O enigma da chegada, livro de 2008 é um
testemunho deslumbrante desse percurso de vida e do nascimento do escritor e
dos temas que o fundiram com o homem, o adolescente e criança em Trindade e o
adulto em Oxford.
O enigma da chegada descreve-nos
a evolução de um escritor, os locais por onde viveu, com destaque para o lugar
que o fez renascer. Justamente um vale perto de Stonehenge, onde habitou uma
casa que integrava uma grande propriedade rural, o que nos permite conhecer uma
região, a sua ocupação humana no tempo. Espaço pertencente à aristocracia
rural, nela vemos desfilar as personagens que lá trabalhavam, as suas
motivações e compreendemos a atmosfera que as envolvia, o seu trabalho, a sua
visão do mundo, a sua intimidade com as coisas. A casa habitada pelo autor e as
experiências vividas nessa propriedade deram-lhe a possibilidade de
encontrar o sentido, o significado para a efemeridade da vida humana.
O enigma da chegada faz a
descrição precisa da paisagem, como o autor a via nos seus passeios e permitiu-lhe
abordar um microcosmo, a sua relação com a sociedade e como o tempo vai
desfazendo sentidos antigos. O enigma da chegada é um livro
que pertence a uma categoria muito restrita. Aquela que tem a capacidade de
dialogar com o leitor, como se falasse com ele directamente. O enigma
da chegada é uma longa e aprazível conversa, onde se revela uma grande
sensibilidade na observação. Os passeios de V. S. Naipul dão-nos uma observação
muito cuidada da Natureza, da sua evolução no tempo. "O jardim de Jack"
e os trabalhadores da mansão dão oportunidades de reflexão ao autor sobre a
vida, as escolhas que se fazem e delas extrai sentidos que parecendo
particulares são absolutos sobre a própria existência.
O passado, os seus fragmentos sem
memórias, os vestígios, relíquias de outras vidas, de outros sonhos procuram
dar um significado para a ideia de ruína e degradação. Sendo um livro
auto-biográfico é muito, uma obra literária sobre o Homem no Tempo. Uma
geografia antes dos homens, o trabalho humano como uma declaração poética, um
sentido vivo da vida ou só mais uma ruína, são questões colocadas. Como lidar
com essa mutação da vida, dos seus objectos no tempo, como compreender a
degradação contínua, a mudança constante em nós, no nosso tempo?
A experiência do que vivemos e a
linguagem, como instrumentos de uma memória e de uma exaltação são tentativas
para obter uma resposta. E ainda a consciência final de que sobre a melancolia
e as nossas dores é importante compreender "que a vida, o ser humano, era o
mistério, a verdadeira religião dos homens, a dor e a glória" (p.438). E
compreendê-lo com assombro pela vida e pelos homens. E aceitar que a vida é
sempre o recomeço de nós próprios. E verificar mais uma vez que a Literatura
pode ser em alguns circunstâncias um instrumento de contextos, de significados
poéticos para uma sobrevivência. A da memória .
(1) V. S. Naipul. (2013). O enigma da chegada. Lisboa: Quetzal.
Autor do texto: - Profº Bibliotecário - Luís Campos -
Sem comentários:
Enviar um comentário